São
2h00 e, Cleópatra, que sofre de
insónias, resolve ouvir na sua aparelhagem e no volume máximo músicas dos
Ornatos Violeta. Júlio César, seu
vizinho, que estava a dormir tranquilamente, acorda com tal barulho. Muito
incomodado por ter sido interrompido no seu sono resolve fazer uma chamada à
PSP solicitando o seu aparecimento no local para intimar a sua vizinha a cessar
com tal ruído. Que poderá Júlio
César fazer se as autoridades policiais ignorarem o seu pedido? Poderá este
recorrer à via contenciosa do Direito Administrativo? Fará sentido chamar os
Tribunais Administrativos a apreciar uma questão entre particulares?
Parece-nos que, para resolver o problema de Júlio César, teremos que interpretar o
artigo 37º/3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante
CPTA).
Este preceito diz-nos que quando os particulares «(...)violem
vínculos jurídico-administrativos decorrentes de normas, actos administrativos
ou contratos(...)» ou, não tendo ainda ocorrido uma violação efectiva, estejam
na iminência de os violar, poderão
ser condenados, em processo administrativo, «(...) a adoptarem ou a absterem-se
de certo comportamento, por forma a assegurar o cumprimento dos vínculos em
causa.» caso as autoridades competentes tendo sido solicitadas a intervir, não
tenham adoptado as medidas convenientes. Assim, o artigo 37º/3 CPTA indica-nos
três “pressupostos” a ter em consideração:
1.
A violação – quer efectiva quer a mera intimidação
- de vínculos jurídicos administrativos. Assim, devemos ter: por um lado, um particular titular de um direito ou
interesse público e, por outro lado, um outro particular ao qual era exigido um
cumprimento de deveres, sujeições ou limitações especiais por razões
de interesse público -» Por não ter havido respeito por tais vinculações surgirá
um litígio jurídico-administrativo;
2.
O particular cujos direitos ou interesses foram
directamente ofendidos deve ter solicitado às autoridades administrativas
competentes a adopção das medidas adequadas para pôr termo ou evitar tal ofensa
sem que, contudo, haja qualquer actuação por parte da administração. No fundo, tem que se verificar uma inércia: é esta apatia perante a
necessidade de agir que sustenta todo o interesse na tutela jurisdicional - claramente
que, se a administração agir deixa de se verificar qualquer ausência de tutela
logo, a aplicação do artigo 37º/3 CPTA perderá todo o seu efeito útil.
3.
Pedido de condenação para a adopção ou
abstenção de certos comportamentos. Parece
resultar da última parte do nº3 do artigo 37º CPTA que o privado apenas poderá
requerer um pedido de condenação
e, já não, um pedido de simples apreciação ou de anulação. O Professor Vasco Pereira da Silva demonstra
alguma perplexidade relativamente a esta auto-limitação: Diz-nos o Professor
que não parece existir quaisquer motivos que levem a esta necessidade de
restrição a um pedido de condenação. Muito pelo contrário: existem mesmo
situações, essencialmente resultantes de relações jurídicas com uma
multiplicidade de sujeitos, em que se justificam pedidos de simples apreciação
ou de natureza constitutiva (ex: pedido dirigido contra o proprietário
de uma fábrica poluente não licenciada: neste caso, o particular pode requerer
não só a condenação na cessação da actividade em causa, bem como, a anulação
dos contratos, celebrados ou a celebrar, que tenham por base a actividade
violadora de normas de Direito Administrativo.
Poderemos, então, afirmar que, no âmbito deste artigo, os particulares
poderão reclamar de um pedido de simples apreciação ou constitutivo? Vasco
Pereira da Silva responde-nos afirmativamente a esta questão: Segundo o
Professor, parece ser de defender uma interpretação sistemática do preceito com
base no principio geral estabelecido no artigo 2º/2 CPTA («A todo o direito ou
interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos
tribunais administrativos...)») e, também, na clausula aberta de pedidos estabelecida
no artigo 37º CPTA.
Mas qual a melhor solução? Será de defender tal interpretação? Ora, é
certo que a letra da lei apenas abrange a condenação dos particulares «(...) a
adoptarem ou a absterem-se de certo comportamento...)» mas, não parece ser esta
a solução mais harmoniosa: já lá vai o tempo do contencioso limitado, do
contencioso austero, de um contencioso que nega os direitos dos particulares e
que se destina a defender os poderes públicos! Se o artigo 37º/2 CPTA na sua alínea
a),p.ex., admite que na acção administrativa comum se possa requerer o
reconhecimento de situações jurídicas subjectivas decorrentes de normas jurídico-administrativas
ou de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito
administrativo porque não poderá o particular fazê-lo nos termos do nº3?
Assim, parece claro que, estando verificadas as
condições 1. e 2. e 3., poderão os particulares
requerer uma tutela jurisdicional administrativa para protecção dos seus
direitos ou interesses.
O que poderemos nós concluir quanto ao caso de Cleópatra e Júlio César?
1.
O D.L 292/2000 de 14 de Novembro (Regulamente Geral sobre o Ruído) tem
como objecto a prevenção do ruído e o controlo da poluição sonora (artº 1).
Neste caso, parece que estaríamos perante a emissão de um ruído de vizinhança
(artigo 3º/3 alínea f)) – trata-se de um som associado ao uso habitacional e às
actividades que lhe são inerentes, produzido em lugar privado, por uma coisa à
guarda de alguém, que pela sua duração e intensidade seja susceptível de
atentar contra a tranquilidade da vizinhança ou saúde pública. Esse ruído foi
produzido no período nocturno – artigo 10º/2 e 3º/3 alínea e). Parece-nos claro
que Cleópatra com a sua conduta estará a violar normas de Direito
Administrativo dirigidas a proteger o direito dos outros a viver num ambiente
de vida humano tranquilo: ouvir música alta às 2h00 afronta a vizinhança – de facto,
tal barulho, durante a noite, poderá ser bastante incómodo pois, é a altura
destinada ao repouso. Assim, tendo em
conta os critérios próprios do bom pai de família/ do homem comum, entendo que,
ouvir música num tom excessivo às 2h00 põe em causa a tranquilidade da
vizinhança;
2.
Júlio
César solicitou às autoridades policiais que interviessem contudo, estes não
compareceram no local. Assim, porque a PSP tinha o dever de agir para pôr cobro
à situação e não o fez (artigo 10º/1 e 2), estamos perante uma situação de não
actuação por parte da administração que legitima a propositura de uma acção
administrativa comum ao abrigo do nº3 do artigo 37 CPTA;
Parece assim que Júlio César poderia, ao abrigo do artigo 37º/3 CPTA, propor uma
acção administrativa comum contra Cleópatra
com fundamento na emissão de poluição sonora.
Sara Arrábida, 19851.
É caso para dizer que foi um "dia mau" para Cleópatra ...
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