(Nota: o presente texto não está
escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.)
Nos
dias de hoje, atingida a etapa que o Prof. Vasco Pereira da Silva denomina por Confirmação ou Crisma do Contencioso
Administrativo, associado ao surgimento do modelo de Estado pós-social, a
reafirmação da natureza jurisdicional do mesmo parece inquestionável, demonstrada
na efectiva tutela dos interesses dos particulares.
Porém,
ultrapassados os tempos do administrador-juiz,
é curioso saber em que situação ficam as exigências do esgotamento prévio das
garantias administrativas, nomeadamente do recurso hierárquico necessário,
como condição fulcral de acesso aos tribunais, um dos reflexos do “traumas de infância” do Contencioso[1].
O
papel da Reforma…
Centremo-nos agora no recurso hierárquico necessário previsto
nos art.167º CPA[2]. No
fundo, este consiste numa burocracia de esforços por parte do particular, e até
mesmo da administração, no sentido de reapreciar uma decisão para que esta, só
posteriormente, possa ser alvo de efectiva tutela jurisdicional feita pelos
tribunais administrativos e não pelos órgãos da administração.
Porém, com a reforma a
determinação da impugnabilidade dos actos administrativos é feita em razão da eficácia externa e da lesão dos direitos dos
particulares, afastando a exigência do recurso hierárquico necessário[3]
– art.51º CPTA[4].
De modo muito sucinto, como
refere o Prof. Vasco Pereira da Silva, e referia mesmo antes da reforma, podemos
encontrar no recurso hierárquico necessário
alguns traços de inconstitucionalidade[5],
derivados da violação dos princípios da
plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art.268º/4 CRP[6]),
da efectividade da tutela (art.268º/4
CRP; art.168º/2 CPA), da separação entre
Administração e Justiça (arts.114º, 205º e ss., 266º e ss. CRP) e da desconcentração administrativa
(art.267º/2 CRP e 142º CPA).
Em síntese, antes da reforma o recurso hierárquico era a condição de acesso à justiça
administrativa, o que poderia dificultar a tutela jurisdicional, uma vez que,
entre outras coisas, os prazos eram demasiado curtos para a interposição do
recurso hierárquico.
Nos dias de hoje…
Com o surgimento do CPTA, não me
parece abusivo considerar que há um “descolar” definitivo da “necessidade” do recurso hierárquico como
condição ou pressuposto de impugnação contenciosa dos actos da Administração.
Como reforço desta ideia, recorde-se o que foi dito tendo em conta o referido
art.51º CPTA.
Por outro lado, como sustenta o
Prof. Paulo Otero, a reforma “acaba por transformar
a impugnação administrativa facultativa em impugnação recomendável”[7].
Ou seja, se analisarmos o art.59º/4 CPTA verificamos que é atribuído um efeito suspensivo do prazo de impugnação
contenciosa devido à utilização de garantias administrativas – como o recurso hierárquico. Bem analisada a
situação, o que ocorre é uma maior eficácia das garantias administrativas, conferindo-lhes um sentido útil, caso o
particular a decida fazer valer, ou seja, não há, de modo nenhum, um “esvaziar”
da figura do recurso hierárquico.
No fundo, o recurso hierárquico deixa de ser um requisito obrigatório, tornando-se, assim, desnecessário, mas, por outro lado, torna-se útil, uma vez que a sua utilização traz vantagens ao particular.
Por outras palavras, as “garantias
administrativas passaram a ser facultativas, delas deixando de depender o
acesso à justiça”[8].
Com isto, o que se pretende é favorecer a utilização das vias administrativas, por parte dos particulares, com o intuito de
resolver situações que por via
contenciosa seriam mais dispendiosas, incómodas e morosas.
É de referir, também, um outro
argumento legal que sustenta a posição do Prof. Vasco Vieira da Silva, que é a
solução apresentada pelo art.59º/5 CPTA. Esta disposição legal afasta por
completo a necessidade do recurso
hierárquico, uma vez que prevê a possibilidade do particular aceder de
imediato à via contenciosa, passando a não ser necessário esperar pela resposta
da administração para impugnar contenciosamente o acto administrativo, ou seja,
permite-se a pendência paralela da mesma acção por via administrativa e
contenciosa.
Contudo, há doutrina e alguma jurisprudência que
persiste em fazer resistência a esta nova visão do recurso hierárquico necessário.
Por exemplo, o Prof. Mário Aroso
de Almeida[9]
defende uma interpretação restritiva
do regime acima referido, afirmando que apenas
a regra geral do CPA foi revogada pelo novo regime de impugnação de actos
do CPTA, propondo, assim, a tese de que todos
os recursos hierárquicos necessários contemplados em legislação avulsa com
regras especiais permaneçam em vigor, tentando, assim, manter a sua
aplicabilidade. Deste modo, para o Prof. Aroso de Almeida as decisões
administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa
necessária nos casos em que isso esteja expressamente
previsto na lei e não tenha sido revogado por expressa disposição.
Porém, também aqui me parece que
o Prof. Vasco Pereira da Silva encontra argumentos para reforçar o seu
pensamento. Isto porque, em resposta à posição anterior, alerta para o carácter
anterior das previsões especiais de
recurso hierárquico necessário, como sendo uma mera repetição da regra geral e não regras “especiais”. Seguidamente,
a revogação da regra geral que as consagrava leva, igualmente, à extinção
destas normas “especiais”. Ou seja, apenas novas
previsões de recurso hierárquico necessário é que seriam verdadeiramente especiais em relação à regra geral, mas,
também estas, não teriam aplicabilidade por inutilidade e inconstitucionalidade[10].
Cumpre tomar posição…
1)
É um facto que a revisão constitucional de 1989, passou a garantir a impugnabilidade
de todos os actos administrativos lesivos, independentemente do carácter
definitivo e executório dos mesmos - art.268º/ 4 CRP.
Acresce
a este dado que a Reforma do Processo
Administrativo de 2004 veio trazer a impugnabilidade de actos
administrativos com eficácia externa, lesivos de direitos dos particulares, não
consagrando qualquer exigência de recurso hierárquico necessário - art.51º/ 1
do CPTA).
Contudo, e baseando-me em alguma
jurisprudência[11],
parece-me, com o merecido respeito, que a alteração do regime se deve mais a
uma evolução demonstrativa do “crescimento efectivo” do Contencioso
Administrativo, do que a inconstitucionalidades.
2)
Será possível que surjam, actualmente, novas
normas avulsas que prevejam o recurso hierárquico necessário?
Primeiramente, com a devida
vénia que parte da doutrina me merece, nomeadamente o Prof. Aroso de Almeida,
parece-me que o argumento da especialidade
das normas avulsas relativamente à regra geral do CPA não pode colher proveito,
uma vez que essas regras especiais avulsas não faziam mais do que repetir aquilo
que até à reforma era a regra geral e uma vez revogada a norma que lhes servia
de sustento, todas as outras deixam de fazer sentido.
Por outro lado, não consigo estender
a rejeição absoluta do recurso hierárquico necessário a toda e qualquer lei
superveniente.
Assim, e com toda a consideração
que o Professor me merece, penso que podem surgir situações em que se possa
admitir a previsão do esgotamento prévio de meios graciosos por particular a
título excepcional, quando
objectivamente justificada, não contrariando por esta razão os princípios
constitucionais – máxime, na linha do disposto no art.18º/ 2 CRP.
Isto porque, na minha óptica, não
se trata de impedir acesso à impugnação contenciosa, mas antes de estabelecer
um requisito procedimental acrescido para o efeito, como instrumento de racionalização dos meios judiciais e de economia processual, uma vez que o
litígio poderá ser resolvido sem recorrer ao tribunal.
Porém, este meu entendimento de
aceitação do recurso hierárquico necessário tem presente a distinção entre
normas especiais e excepcionais. Ou seja, por tudo o que foi dito, não me
parece aceitável, nem tão pouco razoável aceitar que uma nova lei especial
possa prever o recurso hierárquico necessário, mas, ao invés, e nas condições
expostas, poderá eventualmente acontecer numa lei excepcional.
3)
Em suma, na minha opinião, nos termos do actual
CPTA, a lei tem vindo a acompanhar todo o crescimento do Direito Administrativo,
alcançando agora aquilo que já era prenunciado desde há muito tempo.
Concluindo, e tendo sempre em
vista a tutela efectiva dos direitos dos particulares, ao serviço dos quais a
administração deve estar, o recurso
hierárquico transformou-se, por via de regra, de necessário em útil.
Diogo Oliveira Gomes
19568
[1] Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo
como “Direito Constitucional Concretizado” ou ainda por concretizar”?»
in Ventos de mudança no novo contencioso administrativo, Coimbra, 2000.
[2] Código do Procedimento Administrativo.
[3] Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, «De necessário a útil: a Metamorfose do Recurso Hierárquico no Novo
Contencioso Administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, nº47,
Setembro/Outubro, 2004.
[4] Código de Processo dos Tribunais Administrativos.
[5] VASCO PEREIRA DA SILVA, «“Do Velho se Faz Novo”: A Acção Administrativa Especial de Impugnação
de Actos Administrativos», in “Temas e Problemas de Processo Administrativo”,
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2ª Edição; Contudo, com oposição de
parte da Doutrina, nomeadamente o Prof. Viera de Andrade.
[6] Constituição da República Portuguesa.
[7] Cit. PAULO OTERO, «Impugnações
Administrativas», in Cadernos de Justiça Administrativa.
[8] Cit. VASCO PEREIRA DA SILVA, «“Do Velho se Faz Novo”:
A Acção Administrativa Especial de Impugnação de Actos Administrativos», in
“Temas e Problemas de Processo Administrativo”, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas,
2ª Edição
[9] Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos», Almedina,
2007; «As implicações do Direito
Substantivo da Reforma do Contencioso Administrativo», in Caderno de Justiça
Administrativa, nº34, Julho/Agosto, 2002.
[10] Violação dos princípios referidos supra.
[11]Ac. Supremo Tribunal Administrativo 045085 de
09-11-1999; Ac. Supremo Tribunal Administrativo 0701/09 de 11-03-2010; Ac. Tribunal Constitucional n.º 499/96 de 20 de
Março de 1996; Ac. Supremo Tribunal Administrativo 01061/06 de 28-12-2006