terça-feira, 30 de outubro de 2012

O recurso hierárquico necessário tornou-se desnecessário ou ainda desempenha alguma função relevante?

(Nota: o presente texto não está escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.)

Nos dias de hoje, atingida a etapa que o Prof. Vasco Pereira da Silva denomina por Confirmação ou Crisma do Contencioso Administrativo, associado ao surgimento do modelo de Estado pós-social, a reafirmação da natureza jurisdicional do mesmo parece inquestionável, demonstrada na efectiva tutela dos interesses dos particulares.

 
Porém, ultrapassados os tempos do administrador-juiz, é curioso saber em que situação ficam as exigências do esgotamento prévio das garantias administrativas, nomeadamente do recurso hierárquico necessário, como condição fulcral de acesso aos tribunais, um dos reflexos do “traumas de infância” do Contencioso[1].

 

O papel da Reforma…

Centremo-nos agora no recurso hierárquico necessário previsto nos art.167º CPA[2]. No fundo, este consiste numa burocracia de esforços por parte do particular, e até mesmo da administração, no sentido de reapreciar uma decisão para que esta, só posteriormente, possa ser alvo de efectiva tutela jurisdicional feita pelos tribunais administrativos e não pelos órgãos da administração.
 
Porém, com a reforma a determinação da impugnabilidade dos actos administrativos é feita em razão da eficácia externa e da lesão dos direitos dos particulares, afastando a exigência do recurso hierárquico necessário[3] – art.51º CPTA[4].
 
De modo muito sucinto, como refere o Prof. Vasco Pereira da Silva, e referia mesmo antes da reforma, podemos encontrar no recurso hierárquico necessário alguns traços de inconstitucionalidade[5], derivados da violação dos princípios da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art.268º/4 CRP[6]), da efectividade da tutela (art.268º/4 CRP; art.168º/2 CPA), da separação entre Administração e Justiça (arts.114º, 205º e ss., 266º e ss. CRP) e da desconcentração administrativa (art.267º/2 CRP e 142º CPA).

Em síntese, antes da reforma o recurso hierárquico era a condição de acesso à justiça administrativa, o que poderia dificultar a tutela jurisdicional, uma vez que, entre outras coisas, os prazos eram demasiado curtos para a interposição do recurso hierárquico.

 


Nos dias de hoje…

Com o surgimento do CPTA, não me parece abusivo considerar que há um “descolar” definitivo da “necessidade” do recurso hierárquico como condição ou pressuposto de impugnação contenciosa dos actos da Administração. Como reforço desta ideia, recorde-se o que foi dito tendo em conta o referido art.51º CPTA.

Por outro lado, como sustenta o Prof. Paulo Otero, a reforma “acaba por transformar a impugnação administrativa facultativa em impugnação recomendável”[7]. Ou seja, se analisarmos o art.59º/4 CPTA verificamos que é atribuído um efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa devido à utilização de garantias administrativas – como o recurso hierárquico. Bem analisada a situação, o que ocorre é uma maior eficácia das garantias administrativas, conferindo-lhes um sentido útil, caso o particular a decida fazer valer, ou seja, não há, de modo nenhum, um “esvaziar” da figura do recurso hierárquico.


No fundo, o recurso hierárquico deixa de ser um requisito obrigatório, tornando-se, assim, desnecessário, mas, por outro lado, torna-se útil, uma vez que a sua utilização traz vantagens ao particular. Por outras palavras, as “garantias administrativas passaram a ser facultativas, delas deixando de depender o acesso à justiça”[8]. Com isto, o que se pretende é favorecer a utilização das vias administrativas, por parte dos particulares, com o intuito de resolver situações que por via contenciosa seriam mais dispendiosas, incómodas e morosas.

É de referir, também, um outro argumento legal que sustenta a posição do Prof. Vasco Vieira da Silva, que é a solução apresentada pelo art.59º/5 CPTA. Esta disposição legal afasta por completo a necessidade do recurso hierárquico, uma vez que prevê a possibilidade do particular aceder de imediato à via contenciosa, passando a não ser necessário esperar pela resposta da administração para impugnar contenciosamente o acto administrativo, ou seja, permite-se a pendência paralela da mesma acção por via administrativa e contenciosa.
 
Contudo, há doutrina e alguma jurisprudência que persiste em fazer resistência a esta nova visão do recurso hierárquico necessário.

Por exemplo, o Prof. Mário Aroso de Almeida[9] defende uma interpretação restritiva do regime acima referido, afirmando que apenas a regra geral do CPA foi revogada pelo novo regime de impugnação de actos do CPTA, propondo, assim, a tese de que todos os recursos hierárquicos necessários contemplados em legislação avulsa com regras especiais permaneçam em vigor, tentando, assim, manter a sua aplicabilidade. Deste modo, para o Prof. Aroso de Almeida as decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei e não tenha sido revogado por expressa disposição.
 
Porém, também aqui me parece que o Prof. Vasco Pereira da Silva encontra argumentos para reforçar o seu pensamento. Isto porque, em resposta à posição anterior, alerta para o carácter anterior das previsões especiais de recurso hierárquico necessário, como sendo uma mera repetição da regra geral e não regras “especiais”. Seguidamente, a revogação da regra geral que as consagrava leva, igualmente, à extinção destas normas “especiais”. Ou seja, apenas novas previsões de recurso hierárquico necessário é que seriam verdadeiramente especiais em relação à regra geral, mas, também estas, não teriam aplicabilidade por inutilidade e inconstitucionalidade[10].

 

Cumpre tomar posição…

1)             É um facto que a revisão constitucional de 1989, passou a garantir a impugnabilidade de todos os actos administrativos lesivos, independentemente do carácter definitivo e executório dos mesmos - art.268º/ 4 CRP.

Acresce a este dado que a Reforma do Processo Administrativo de 2004 veio trazer a impugnabilidade de actos administrativos com eficácia externa, lesivos de direitos dos particulares, não consagrando qualquer exigência de recurso hierárquico necessário - art.51º/ 1 do CPTA).

Contudo, e baseando-me em alguma jurisprudência[11], parece-me, com o merecido respeito, que a alteração do regime se deve mais a uma evolução demonstrativa do “crescimento efectivo” do Contencioso Administrativo, do que a inconstitucionalidades.

 

2)                  Será possível que surjam, actualmente, novas normas avulsas que prevejam o recurso hierárquico necessário?

Primeiramente, com a devida vénia que parte da doutrina me merece, nomeadamente o Prof. Aroso de Almeida, parece-me que o argumento da especialidade das normas avulsas relativamente à regra geral do CPA não pode colher proveito, uma vez que essas regras especiais avulsas não faziam mais do que repetir aquilo que até à reforma era a regra geral e uma vez revogada a norma que lhes servia de sustento, todas as outras deixam de fazer sentido.

Por outro lado, não consigo estender a rejeição absoluta do recurso hierárquico necessário a toda e qualquer lei superveniente.

Assim, e com toda a consideração que o Professor me merece, penso que podem surgir situações em que se possa admitir a previsão do esgotamento prévio de meios graciosos por particular a título excepcional, quando objectivamente justificada, não contrariando por esta razão os princípios constitucionais – máxime, na linha do disposto no art.18º/ 2 CRP.

Isto porque, na minha óptica, não se trata de impedir acesso à impugnação contenciosa, mas antes de estabelecer um requisito procedimental acrescido para o efeito, como instrumento de racionalização dos meios judiciais e de economia processual, uma vez que o litígio poderá ser resolvido sem recorrer ao tribunal.

Porém, este meu entendimento de aceitação do recurso hierárquico necessário tem presente a distinção entre normas especiais e excepcionais. Ou seja, por tudo o que foi dito, não me parece aceitável, nem tão pouco razoável aceitar que uma nova lei especial possa prever o recurso hierárquico necessário, mas, ao invés, e nas condições expostas, poderá eventualmente acontecer numa lei excepcional.

 

3)                Em suma, na minha opinião, nos termos do actual CPTA, a lei tem vindo a acompanhar todo o crescimento do Direito Administrativo, alcançando agora aquilo que já era prenunciado desde há muito tempo.

Concluindo, e tendo sempre em vista a tutela efectiva dos direitos dos particulares, ao serviço dos quais a administração deve estar, o recurso hierárquico transformou-se, por via de regra, de necessário em útil.



Diogo Oliveira Gomes

19568



[1] Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo  como “Direito Constitucional Concretizado” ou ainda por concretizar”?» in Ventos de mudança no novo contencioso administrativo, Coimbra, 2000.
[2] Código do Procedimento Administrativo.
[3] Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, «De necessário a útil: a Metamorfose do Recurso Hierárquico no Novo Contencioso Administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, nº47, Setembro/Outubro, 2004.
[4] Código de Processo dos Tribunais Administrativos.
[5] VASCO PEREIRA DA SILVA, «“Do Velho se Faz Novo”: A Acção Administrativa Especial de Impugnação de Actos Administrativos», in “Temas e Problemas de Processo Administrativo”, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2ª Edição; Contudo, com oposição de parte da Doutrina, nomeadamente o Prof. Viera de Andrade.
[6] Constituição da República Portuguesa.
[7] Cit. PAULO OTERO, «Impugnações Administrativas», in Cadernos de Justiça Administrativa.
[8] Cit. VASCO PEREIRA DA SILVA, «“Do Velho se Faz Novo”: A Acção Administrativa Especial de Impugnação de Actos Administrativos», in “Temas e Problemas de Processo Administrativo”, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2ª Edição
[9] Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos», Almedina, 2007; «As implicações do Direito Substantivo da Reforma do Contencioso Administrativo», in Caderno de Justiça Administrativa, nº34, Julho/Agosto, 2002.
[10] Violação dos princípios referidos supra.
[11]Ac. Supremo Tribunal Administrativo 045085 de 09-11-1999; Ac. Supremo Tribunal Administrativo 0701/09 de 11-03-2010; Ac. Tribunal Constitucional n.º 499/96 de 20 de Março de 1996; Ac. Supremo Tribunal Administrativo 01061/06 de 28-12-2006

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