domingo, 25 de novembro de 2012

37º/3 CPTA



São 2h00 e, Cleópatra, que sofre de insónias, resolve ouvir na sua aparelhagem e no volume máximo músicas dos Ornatos Violeta. Júlio César, seu vizinho, que estava a dormir tranquilamente, acorda com tal barulho. Muito incomodado por ter sido interrompido no seu sono resolve fazer uma chamada à PSP solicitando o seu aparecimento no local para intimar a sua vizinha a cessar com tal ruído. Que poderá Júlio César fazer se as autoridades policiais ignorarem o seu pedido? Poderá este recorrer à via contenciosa do Direito Administrativo? Fará sentido chamar os Tribunais Administrativos a apreciar uma questão entre particulares?

Parece-nos que, para resolver o problema de Júlio César, teremos que interpretar o artigo 37º/3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA).


Este preceito diz-nos que quando os particulares «(...)violem vínculos jurídico-administrativos decorrentes de normas, actos administrativos ou contratos(...)» ou, não tendo ainda ocorrido uma violação efectiva, estejam na iminência de os violar, poderão ser condenados, em processo administrativo, «(...) a adoptarem ou a absterem-se de certo comportamento, por forma a assegurar o cumprimento dos vínculos em causa.» caso as autoridades competentes tendo sido solicitadas a intervir, não tenham adoptado as medidas convenientes. Assim, o artigo 37º/3 CPTA indica-nos três “pressupostos” a ter em consideração:


1.      A violação – quer efectiva quer a mera intimidação -  de vínculos jurídicos administrativos. Assim, devemos ter: por um lado, um particular titular de um direito ou interesse público e, por outro lado, um outro particular ao qual era exigido um cumprimento de deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público -» Por não ter havido respeito por tais vinculações surgirá um litígio jurídico-administrativo;
2.      O particular cujos direitos ou interesses foram directamente ofendidos deve ter solicitado às autoridades administrativas competentes a adopção das medidas adequadas para pôr termo ou evitar tal ofensa sem que, contudo, haja qualquer actuação por parte da administração. No fundo, tem que se verificar uma inércia: é esta apatia perante a necessidade de agir que sustenta todo o interesse na tutela jurisdicional - claramente que, se a administração agir deixa de se verificar qualquer ausência de tutela logo, a aplicação do artigo 37º/3 CPTA perderá todo o seu efeito útil.
3.      Pedido de condenação para a adopção ou abstenção de certos comportamentos. Parece resultar da última parte do nº3 do artigo 37º CPTA que o privado apenas poderá requerer um pedido de condenação e, já não, um pedido de simples apreciação ou de anulação. O Professor Vasco Pereira da Silva demonstra alguma perplexidade relativamente a esta auto-limitação: Diz-nos o Professor que não parece existir quaisquer motivos que levem a esta necessidade de restrição a um pedido de condenação. Muito pelo contrário: existem mesmo situações, essencialmente resultantes de relações jurídicas com uma multiplicidade de sujeitos, em que se justificam pedidos de simples apreciação ou de natureza constitutiva (ex: pedido dirigido contra o proprietário de uma fábrica poluente não licenciada: neste caso, o particular pode requerer não só a condenação na cessação da actividade em causa, bem como, a anulação dos contratos, celebrados ou a celebrar, que tenham por base a actividade violadora de normas de Direito Administrativo.
Poderemos, então, afirmar que, no âmbito deste artigo, os particulares poderão reclamar de um pedido de simples apreciação ou constitutivo? Vasco Pereira da Silva responde-nos afirmativamente a esta questão: Segundo o Professor, parece ser de defender uma interpretação sistemática do preceito com base no principio geral estabelecido no artigo 2º/2 CPTA («A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos...)») e, também, na clausula aberta de pedidos estabelecida no artigo 37º CPTA.
Mas qual a melhor solução? Será de defender tal interpretação? Ora, é certo que a letra da lei apenas abrange a condenação dos particulares «(...) a adoptarem ou a absterem-se de certo comportamento...)» mas, não parece ser esta a solução mais harmoniosa: já lá vai o tempo do contencioso limitado, do contencioso austero, de um contencioso que nega os direitos dos particulares e que se destina a defender os poderes públicos! Se o artigo 37º/2 CPTA na sua alínea a),p.ex., admite que na acção administrativa comum se possa requerer o reconhecimento de situações jurídicas subjectivas decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo porque não poderá o particular fazê-lo nos termos do nº3?


Assim, parece claro que, estando verificadas as condições  1. e 2. e 3., poderão os particulares requerer uma tutela jurisdicional administrativa para protecção dos seus direitos ou interesses.

O que poderemos nós concluir quanto ao caso de Cleópatra e Júlio César?
1.      O D.L 292/2000 de 14 de Novembro (Regulamente Geral sobre o Ruído) tem como objecto a prevenção do ruído e o controlo da poluição sonora (artº 1). Neste caso, parece que estaríamos perante a emissão de um ruído de vizinhança (artigo 3º/3 alínea f)) – trata-se de um som associado ao uso habitacional e às actividades que lhe são inerentes, produzido em lugar privado, por uma coisa à guarda de alguém, que pela sua duração e intensidade seja susceptível de atentar contra a tranquilidade da vizinhança ou saúde pública. Esse ruído foi produzido no período nocturno – artigo 10º/2 e 3º/3 alínea e). Parece-nos claro que Cleópatra com a sua conduta estará a violar normas de Direito Administrativo dirigidas a proteger o direito dos outros a viver num ambiente de vida humano tranquilo: ouvir música alta às 2h00 afronta a vizinhança – de facto, tal barulho, durante a noite, poderá ser bastante incómodo pois, é a altura destinada ao repouso.  Assim, tendo em conta os critérios próprios do bom pai de família/ do homem comum, entendo que, ouvir música num tom excessivo às 2h00 põe em causa a tranquilidade da vizinhança;
2.      Júlio César solicitou às autoridades policiais que interviessem contudo, estes não compareceram no local. Assim, porque a PSP tinha o dever de agir para pôr cobro à situação e não o fez (artigo 10º/1 e 2), estamos perante uma situação de não actuação por parte da administração que legitima a propositura de uma acção administrativa comum ao abrigo do nº3 do artigo 37 CPTA;

Parece assim que Júlio César poderia, ao abrigo do artigo 37º/3 CPTA, propor uma acção administrativa comum contra Cleópatra com fundamento na emissão de poluição sonora.




                                                                      Sara Arrábida, 19851.

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