Colectânea “Crimes Contenciosos”
Terá
a Reforma do Contencioso assassinado a tutela jurisdicional efectiva?
Uma breve reflexão sobre os
processos em massa
Introdução
Desde já informo que trata-se
aqui de uma mera reflexão e não de um trabalho exaustivo e que, precisamente
por isso, mais informações deverão ser pesquisadas autonomamente se, como
pretendo, este trabalho suscitar interesse para o tema.
Ademais e em ligação, este trabalho é uma
espécie de introdução ou, melhor, um modesto ‘complemento’ ao escrito do
Assistente João Tiago Silveira intitulado “O Mecanismo dos Processos em Massa
no Contencioso Administrativo” contido nas páginas 431 ss do IV volume dos
recentes e mais que ansiados Estudos em Homenagem ao Professor Jorge Miranda.
Reflexão
Nos termos do art. 48.º do Código
do Processo dos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), por forte
influência do Direito Comparado, é possível encontrar nos seus vários números
um mecanismo processual de ‘desanuviamento’ judiciário. Para o Professor Vasco
Pereira da Silva, segundo o "nosso" Manual, é “a solução mais eficiente do ponto de vista do funcionamento
dos tribunais”. Para Maria Teresa Ferreira, da subturma 3 de um ano passado, no
blogue “O Riso é Contencioso” dos alunos da Dra. Alexandra Leitão, é dos
exemplos de meio de “agilização do contencioso e uma tutela em tempo útil”. Já
para João Tiago Silveira tem “evidentes propósitos de celeridade processual e
de fomento da uniformização jurisprudencial”.
Basicamente, mediante a verificação dos requisitos de aplicação, é possível suspender alguns processos que
tenham dado entrada num dado tribunal administrativo para se seguir em frente
com um apenas ou uns quantos desse molho e, em abono da verdade, ver até onde
vai dar.
Os seus pressupostos estão no
art. 48.º/1.
Apesar de concordar parcialmente
com uma visão economicista da realidade (de toda a realidade!), e admitir que
o Direito não se pode escapar a esta verdade (quasi-)universal sob pena de se
tornar obsoleto e, pior, como muito receiam os Comercialistas, de se tornarem
os tribunais verdadeiras barreiras impeditivas de se alcançar a Justiça (vá, cum grano salis, pelo menos, a do caso
concreto), a apresentação destes mecanismos de uma forma algo leviana na Lei
Contenciosa – nomeadamente, sob o arbítrio do juiz presidente a escolha do
“andamento a apenas um ou alguns deles” (art. 48.º/1) –, pode ser mais que um
mero aborrecimento para os particulares. Sem querer alarmar as populações nem
parecer núncio de mais nuvens negras no Apocalipse legislativo em que se vive
neste país, pode ser mesmo que sob a “suspensão da tramitação dos demais
processos” venha encapotada uma suspensão do direito de acesso à justiça, rectius, do “princípio da tutela
jurisdicional efectiva”.
E isto porquê?
Porque, de facto, atendendo à
morosidade dos tribunais com que estamos (mal) habituados a lidar e ao crescendo de litigiosidade que sentimos
– e de que se pode dar nota remetendo para o site pordata.pt (sem querer aqui
fazer publicidade) – permitida, in
concreto, (também mas não só) pela desnecessidade do recurso hierárquico
necessário e pela tendência da Administração Pública Portuguesa para a
incompetência, há várias situações hoje em dia em que surgem processos
semelhantes e com uma base substantiva igual ou paralela a 'atafulhar' os nossos
Tribunais Administrativos.
Para confirmar o dito basta fazer
uma pesquisa no sítio dgsi.pt e/ou confirmar em
vlex.pt/tags/processos-em-massa-490237.
Bem, ao que interessa.
A utilização de conceitos vagos neste
artigo (não indeterminados cuidado, não se confundam) é um argumento de força
essencial para demonstrar que a solução do Legislador pode não ser má mas é
deficiente, é melindrosa. Falta concretização na escolha do processo e esta
aleatoriedade do juiz presidente atenta-me o espírito. Sem dúvida que deverá o
processo eleito (processo-modelo é o termo mais comum apesar de não gostar
muito da sua utilização neste âmbito) conter todas as garantias, ab initio,
que pareçam possíveis apresentar pelos Autores mas e se não o fizer? E quanto
tempo demora a encontrar-se isso mesmo? E quais as garantias de que o
mandatário do Autor vai fazer as coisas bem por forma a que todos os trunfos
sejam jogados?
Acho que aqui temos uma linha.
Não que separa apenas mas que une também. Tem de haver um equilíbrio entre os
extremos “suspensão” (de todos os restantes processos) e “eleição” (de um ou
uns poucos) através da permissão de intervenção inicial e superveniente dos que
‘ficam no banco de suplentes’ e o normal desenvolvimento do processo
contencioso. Ora, parece-me é que este equilíbrio ainda não foi alcançado e que
o ‘tom simplista’ com que esta matéria foi tratada reconduz-la, excessivamente,
a uma situação lacunar e, se possível, de resolução sistemática.
No entanto, em bom rigor (adoro
esta expressão desculpem), penso que o Legislador consagrou três alavancas de
segurança que devem ser atendidas nesta discussão e cuja pujança não pode ser
descurada para se ver até onde podem ir e qual a projecção da sua eficácia para
saber se estamos perante uma matança ou mero esfaqueamento não mortal do
princípio de segurança judicial enunciado no título.
A primeira é a audição das partes
(no /1), a segunda é a bicefalia de amplitude e celeridade (leia-se garantias) do
primeiro processo (/3 e /4) e a terceira é a quadricefalia de soluções no final
do processo prioritário (ou processos, constante no /5). Pensemos sumariamente
nelas.
i) Quanto à
primeira,
Parece-me que só se resigna quem
quer. Não sei qual a amplitude e eficácia dada à audição das Partes mas, na
melhor das hipóteses, poderão dizer que não querem que assim seja. Problemático
se torna quando estiverem ‘entre a espada e a parede’ face à logística
judiciária.
ii) Quanto à
segunda,
Lembremos os requisitos de
aplicação. Têm de ser um mínimo de 20 processos (curiosamente, sinto-me até
tentado a dizer que, para um tribunal pequeno, esse número é excessivo porque,
suponhamos, entre bloquear a decorrência do processo que entrou no dia 30
porque 15 ou 18 entraram no dia 10 e não há mãos para tanto papel e escolher um
de entre vários e ver no que dá, com a ‘segurança’ de que, se correr bem,
poder-se-ão estender os seus efeitos ao caso em potência, então até prefiro
este mecanismo mas até para menos processos. Cá está, de novo, o problema da
simplificação da linguagem) e, aqui não nego, é vital a abrangência do /3 e o
impulso do /4.
Só não sei é até que ponto a
logística judiciária permite que a Lei se concretize mas... E que grande mas
que é! Deixo ao pensamento e à consideração de cada um.
Um outro problema principal é o
tempo útil da decisão. É verdade que, ao que parece, se lhes aplicam o disposto
para “os processos urgentes e no seu julgamento intervêm todos os juízes do
tribunal ou da secção” mas... Mas e se o Tribunal estiver, já de si, cheio? Ou
muito cheio mesmo? E se o advogado da Parte cujo processo foi eleito é mau? Se
for mesmo muito fraquinho na acção. Tem imenso jeito para escrever uma PI mas
depois, na hora da verdade, coitado, não é muito bom a arguir o seu caso (para
não dizer pior). Ou seja, estaremos a perder tempo (dos outros ‘queixosos’) num
Processo que, vamos supor, acaba mal e o Autor perde.
iii) Quanto à
terceira,
Bem, menos seria aniquilar mesmo
o princípio em causa e a minha fúria não teria fim.
Pegunto-me, não obstante, o que
sucede se não estiver verificada a parte do seu proémio que diz “e seja de
entender que a mesma solução pode ser aplicada aos processos que tenham
ficado suspensos”. Mas esses processos, a ser diferentes, estariam suspensos?
Se não, porque é dito isto? Se sim, só agora é que são retomados? Não continuam
suspensos pois não?? Quando é que se apura da sua especificidade? Presumo que
no início, donde, não compreendo esta esgrima gramatical.
E também me pergunto se a alínea
c) do /5 se aplicará de forma tão pacífica quanto as suas 7 palavras querem fazer
parecer. E se ninguém ficar satisfeito com a decisão? Imaginemos que ela é
parcial na sua favorabilidade (ex: 30 professores insatisfeitos com a decisão
da DREL de encerramento da sua escola e não total acordo quanto a indemnizações
e recolocações após o processo eleito) e que querem todos os particulares,
menos o exemplar, continuar ou, já na alínea d), recorrer da sentença? Vão
todos ao mesmo tempo ou dá-se lugar ao mesmo mecanismo de ‘triagem judiciária’?
É que se não puderem ir todos, estaríamos a limitar o nosso estimado direito. À partida irão todos mas a confusão que o mecanismo pretende evitar deverá actuar, não?
Calculo que estas perguntas
tenham resposta - pelo menos algumas - mas a criação científica e a prática judiciária devem ser
enformadas (mas não deformadas) por uma boa, sucinta e clara técnica
legislativa. Boa porque pensada mas não rebuscada; sucinta porque directa mas
não simplista; clara porque técnica mas não confusa.
Há, por outro lado, evidentes
vantagens (que não vou explorar por já o terem sido por outros, bem mais
qualificados que eu):
i) tramitação
urgente - um único ritmo
ii)
diminuição de proliferação de litígios
iii)
uniformização jurisprudencial
Conclusão
Donde, revisitando os meus
próprios pensamentos quando comecei este trabalho (em que ainda estava de
cabeça quente e pensava que este mecanismo era um ultraje ao que de brilhante
tinha o sistema contencioso ocidental), penso que podem e devem ser retocados e
clarificados, pelo menos, os aspectos relacionados com a escolha do processo e com a
intervenção dos sujeitos que ficaram de fora. Isto porque, humanamente, não há
volta a dar. É preferível ter este mecanismo ou não ter? Não sei responder
desculpem. Há “valores mais altos” que se levantam face ao direito de acesso à
justiça? Talvez... Mas até onde? E quais?
Também temos de nos lembrar que
este mecanismo é tímido na vida judiciária portuguesa quer porque é recente
quer porque, em abono da verdade, o que pode dirimir algum dramatismo à expressão,
a verificação das condições e pressupostos para sua aplicação não é o pão nosso
de cada dia.
Desculpem não ter comparado com a
class action norte-americana e a
ilustração desta reflexão não ser a melhor mas deixarei isso para uma altura
póstuma (se me lembrar) em que me apeteça continuar a discorrer sobre ius constituto.
Assim, em resposta à interrogação
que coroou o nosso trabalho, devemos responder ‘nim’. Ou seja, nem não nem sim.
Porquê? Porque, de facto, a Reforma não matou o dito direito ou princípio MAS
deu-lhe umas facadinhas. De tal forma que este, coitado, poderá vir a ser admitido
nas urgências da Assembleia mas, por ora, certamente que ainda está em lista de
espera para ser (re)pensado e (re)visto.
-- FIM --
PS: este texto é uma opinião
pessoal e foi escrito de forma humorada de propósito para assim as
idiossincrasias e intermitências do tema em questão serem mais ‘apelativas’ ao
leitor, sem descurar o necessário rigor técnico que um blogue jurídico exige.
Qualquer pessoa incomodada é convidada a (educamente) protestar (ou seja,
escrevendo “com o devido respeito no início”).
PPS: sou contra o Novo Acordo
Ortográfico e o meu computador não corrige em Português por alguma razão
mística. E, já agora, desculpem a extensão da publicação.
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