sábado, 17 de novembro de 2012

"Quem salva uma vida humana é como se salvasse um universo inteiro"



Estreou nas salas de cinema “O cônsul de Bordéus”. Ao meu entusiasmo por Sousa Mendes somou-se uma sensação de desafio provocada pela índole administrativa inserida no enredo cinematográfico com a Circular 14

Questiono-me: E se esta mesma fórmula, pela qual as autoridades superiores comunicam ordens uniformes a funcionários subordinados, entrasse atualmente em vigor?

Vamos imaginar (confio que o esforço possa parecer desconforme com a nossa realidade sociopolítica, mas aprender Direito é mesmo isto: questionarmo-nos juridicamente sobre aquilo que nos rodeia, até mesmo sobre um simples filme) que o Ministério dos Negócios Estrangeiros determina que os funcionários do Estado Português em serviços externos não poderão conceder vistos consulares em termos idênticos aos da Circular de 1939.

O que diz o Direito se Norbert Gingold pretender "combater a ilegalidade" da norma num tribunal administrativo português?


   1) Apesar de ser discutível, vamos qualificar a circular como norma regulamentar para efeitos de contencioso. Não é a definição de uma categoria de destinatários (diretos e indiretos) que a torna uma norma individualizadora. Como isso não decorre da ordem emanada, teremos de atender aos efeitos desencadeados em situações concretas de molde a compreender quais os sujeitos afetados.

2) A acção correspondente será a acção administrativa especial (art. 46º/2/c) na modalidade de acção de impugnação da norma regulamentar (artigos 72º. e segs.) 

   3) Exequível diretamente/Lesão: Há previsibilidade de uma lesão próxima ou até de uma lesão imediata da norma, por via dos seus efeitos imediatamente operativos, como a redução dramática dos pedidos de concessão de vistos; a reestruturação discriminatória das tarefas a desempenhar pelos funcionários; a imposição de uma conduta antissemita aos diplomatas; alterações no controlo fronteiriço; a assunção de um ideal político violador de preceitos constitucionais e de Direito Internacional Publico no tratamento dos cidadãos em causa etc. Assim, há possibilidade de a mesma ser diretamente impugnada sem que para isso seja necessária a recusa da concessão do visto (ato administrativo). Norbert Gingold não precisa de suplicar por um visto (que lhe será negado à partida) para impugnar a circular. (art.73º/2)

4) Legitimidade: (não se circunscreve aos destinatários diretos da norma). No caso, o diploma disciplina a relação entre a administração e os particulares e a sua aplicação abraça também pessoas estranhas aos serviços administrativos, produzindo efeitos para fora do próprio Ministério. Esta circular tem um carácter normativo e não puramente organizatório. Não nos devemos "enganar" pelo nomen iuris e sustentar uma eficácia meramente interna. Deste modo, serão considerados como sujeitos legítimos em ação particular todos aqueles cujas posições jurídicas subjetivas são afetadas com a recusa.  Norbert Gingold tinha interesse direto na demanda, há uma razão jurídica que lhe permite defender-se (art. 73º/2)

5) Fundamentos (sucinto)
Nulidade do regulamento: É consensual que no quadro da sua soberania cada país tenha o dever de zelar pela integridade e segurança do seu património e dos seus cidadãos contra qualquer tipo de ameaça que possa vir do exterior. Contudo, o direito de toda a pessoa livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado, consensual é. As condições exigidas para a concessão de vistos não podem violar os direitos do Homem, discriminando-O com fundamento na raça, na língua, na religião, na opinião política. (importa referir que a presente Circular não poderia ser acolhida em tudo o que colidisse com as especificidades da livre circulação de pessoas no espaço da União Europeia.)

 Há violação da lei fundamental do ordenamento jurídico à qual cabe o desvalor jurídico mais grave - a nulidade. 

  6) Consequência da procedência da acão: Desaplicação da norma regulamentar em concreto ao invés da desaplicação com força obrigatória geral (cessão da vigência). Repare-se que está em jogo a apreciação de uma questão que causa infortúnios sem ser necessário o comportamento do funcionário. A meu ver, essa apreciação abarca um juízo de mérito acerca da razão de ser da norma em quaisquer das situações da vida por ela abrangidas e isso verificar-se-á sempre (art. 73º/2)


     No fundo, se o Ministério Público sofresse de paralisia do sono, outros para além de Gingold teriam de se manifestar para que mais ninguém fosse sujeito a tal recusa.  O préstimo da decisão judicial é suficiente? E o que é feito da coerência do ordenamento jurídico? A mim parece-me que o Direito não cumpre plenamente a sua missão! Se é para cortar com o mal, escute-se o povo: que seja pela raiz! 
E, é caso para concluir que se nos valêssemos apenas deste meio de tutela (fique claro que estou a ignorar  a fiscalização concreta da inconstitucionaldidade de normas administrativas - art 280º CRP), bem podia Aristides multiplicar até à exaustão a sua assinatura contra as ordens do Ministério.



Em Novembro de 1939, o Ministério emitiu a circular 14, que autorizava só aos diplomatas de carreira a concessão de vistos e que os obrigava a consultar a PVDE e o MNE antes de visarem os passaportes de apátridas e russos, dos judeus expulsos dos seus países e de pessoas sem visto dos países de destino e sem garantia de embarque para sair de Portugal.


Beatriz Eusébio da Costa - 19518

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