Estreou nas salas de cinema “O cônsul
de Bordéus”. Ao meu entusiasmo por Sousa Mendes somou-se uma sensação de
desafio provocada pela índole administrativa inserida no enredo cinematográfico com a Circular 14.
Questiono-me: E se esta mesma fórmula, pela qual as autoridades superiores comunicam
ordens uniformes a funcionários subordinados, entrasse atualmente em vigor?
Vamos imaginar (confio que o esforço
possa parecer desconforme com a nossa realidade sociopolítica, mas aprender
Direito é mesmo isto: questionarmo-nos juridicamente sobre aquilo que nos
rodeia, até mesmo sobre um simples filme) que o Ministério dos Negócios
Estrangeiros determina que os funcionários do Estado Português em serviços
externos não poderão conceder vistos consulares em termos idênticos aos da
Circular de 1939.
O que diz o Direito se Norbert Gingold pretender
"combater a ilegalidade" da norma num tribunal administrativo português?
1) Apesar de ser discutível, vamos qualificar a
circular como norma regulamentar para
efeitos de contencioso. Não é a definição de uma categoria de destinatários (diretos e indiretos) que a
torna uma norma individualizadora. Como isso não decorre da ordem emanada,
teremos de atender aos efeitos desencadeados em situações concretas de molde a
compreender quais os sujeitos afetados.
2) A acção correspondente será a acção administrativa especial (art. 46º/2/c) na modalidade de acção de impugnação da norma regulamentar (artigos 72º. e segs.)
3) Exequível diretamente/Lesão: Há previsibilidade de uma lesão próxima ou até de uma lesão imediata da norma, por via dos seus efeitos imediatamente operativos, como a redução dramática dos pedidos de concessão de vistos; a reestruturação discriminatória das tarefas a desempenhar pelos funcionários; a imposição de uma conduta antissemita aos diplomatas; alterações no controlo fronteiriço; a assunção de um ideal político violador de preceitos constitucionais e de Direito Internacional Publico no tratamento dos cidadãos em causa etc. Assim, há possibilidade de a mesma ser diretamente impugnada sem que para isso seja necessária a recusa da concessão do visto (ato administrativo). Norbert Gingold não precisa de suplicar por um visto (que lhe será negado à partida) para impugnar a circular. (art.73º/2)
4) Legitimidade: (não se circunscreve aos destinatários diretos da norma). No caso, o diploma disciplina a relação entre a administração e os particulares e a sua aplicação abraça também pessoas estranhas aos serviços administrativos, produzindo efeitos para fora do próprio Ministério. Esta circular tem um carácter normativo e não puramente organizatório. Não nos devemos "enganar" pelo nomen iuris e sustentar uma eficácia meramente interna. Deste modo, serão considerados como sujeitos legítimos em ação particular todos aqueles cujas posições jurídicas subjetivas são afetadas com a recusa. Norbert Gingold tinha interesse direto na demanda, há uma razão jurídica que lhe permite defender-se (art. 73º/2)
5) Fundamentos (sucinto)
Nulidade do regulamento: É consensual que no quadro da sua soberania cada país tenha
o dever de zelar pela integridade e segurança do seu património e dos seus
cidadãos contra qualquer tipo de ameaça que possa vir do exterior. Contudo, o
direito de toda a pessoa livremente circular e escolher a sua residência no
interior de um Estado, consensual é. As
condições exigidas para a concessão de vistos não podem violar os direitos do Homem, discriminando-O
com fundamento na raça, na língua, na religião, na opinião política. (importa
referir que a presente Circular não poderia ser acolhida em tudo o que colidisse
com as especificidades da livre circulação de pessoas no espaço da União Europeia.)
Há
violação da lei fundamental do ordenamento jurídico à qual cabe o desvalor
jurídico mais grave - a nulidade.
6) Consequência da procedência da acão: Desaplicação da norma regulamentar em concreto ao invés da desaplicação com força obrigatória geral (cessão da vigência). Repare-se que está em jogo a apreciação de uma questão que causa infortúnios sem ser necessário o comportamento do funcionário. A meu ver, essa apreciação abarca um juízo de mérito acerca da razão de ser da norma em quaisquer das situações da vida por ela abrangidas e isso verificar-se-á sempre. (art. 73º/2)
6) Consequência da procedência da acão: Desaplicação da norma regulamentar em concreto ao invés da desaplicação com força obrigatória geral (cessão da vigência). Repare-se que está em jogo a apreciação de uma questão que causa infortúnios sem ser necessário o comportamento do funcionário. A meu ver, essa apreciação abarca um juízo de mérito acerca da razão de ser da norma em quaisquer das situações da vida por ela abrangidas e isso verificar-se-á sempre. (art. 73º/2)
No fundo, se o Ministério Público sofresse de paralisia do sono, outros para além de Gingold teriam de se manifestar para que mais ninguém fosse sujeito a tal recusa. O préstimo da decisão judicial é suficiente? E o que é feito da coerência do ordenamento jurídico? A mim parece-me que o Direito não cumpre plenamente a sua missão! Se é para cortar com o mal, escute-se o povo: que seja pela raiz!
E, é caso para concluir que se nos
valêssemos apenas deste meio de tutela (fique claro que estou a ignorar a fiscalização concreta da inconstitucionaldidade de normas administrativas - art 280º CRP),
bem podia Aristides multiplicar até à exaustão a sua assinatura contra as
ordens do Ministério.
Em
Novembro de 1939, o Ministério emitiu a circular 14, que autorizava só aos
diplomatas de carreira a concessão de vistos e que os obrigava a consultar a
PVDE e o MNE antes de visarem os passaportes de apátridas e russos, dos judeus
expulsos dos seus países e de pessoas sem visto dos países de destino e sem
garantia de embarque para sair de Portugal.
Beatriz Eusébio da Costa - 19518
Beatriz Eusébio da Costa - 19518
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