segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A impugnabilidade de actos administrativos


Com a reforma do contencioso administrativo o recurso de anulação deu lugar à acção de impugnação de actos administrativos, que tem por finalidade a apreciação da totalidade da relação jurídica administrativa. As diferenças entre ambos são, porém, imensas.

Olhando apenas para as diferenças estruturais, podemos concluir que o recurso de anulação contencioso tinha por objecto quaisquer actos administrativos, reais ou ficcionados (como sucedia com o “acto tácito”), positivos ou negativos, enquanto a “nova” acção administrativa especial de impugnação se destina apenas à invalidação de actos administrativos expressos positivos (cujos efeitos jurídicos se repercutem desfavoravelmente na esfera jurídica de alguém).

A função de impugnação é, em traços largos, justificada pelo controlo de invalidade dos actos administrativos. Por esta razão, a lei continua a prever a utilização deste meio para obter a declaração de nulidade ou de inexistência de actos administrativos, embora seja provável que o pedido continue a ser, em regra, dirigido a obter a anulação de tais actos.
O conceito de acto administrativo impugnável constitui um dos pressupostos processuais específicos e, de cujo preenchimento depende a dedução em juízo da impugnação de actos administrativos (artigos 50.º a 65.º CPTA), sendo que a determinação dos actos impugnáveis se fará sempre sem prejuízo injustificado do demandante[1]. Assim, o acto impugnável surge como o acto passível de ser impugnado junto dos tribunais administrativos, cujo conceito tradicional era de «recorribilidade do acto administrativo». A este propósito surgem vários aspectos que são, ou podem ser, cumulativamente necessários “para que tenhamos ter um acto administrativo que possa ser impugnado por quem se propõe a impugna-lo”[2], mas que, em bom rigor, dizem  respeito, cada um deles, a requisitos diferentes.

A pretensão subjacente à impugnação de actos administrativos, há-de consistir, como referido no artigo 50.º/1 CPTA, na respectiva anulação ou declaração de nulidade ou inexistência. Esta é, pois, a pretensão pelo autor, e que tem, necessariamente, de se reportar a um acto administrativo, sendo que este tem de reunir todos os atributos que permitem qualifica-lo como um acto.

Assim, para que a acção impugnatória possa ser considerada procedente, sendo dada como admissível, é necessário que se afirme a ilegitimidade jurídica do acto administrativo em causa, padecendo o mesmo de uma qualquer ilegalidade geradora da sua invalidade. Por sua vez, é igualmente necessário que a ilegalidade detectada determine a invalidade ou a inexistência do acto em causa, devendo a ordem jurídica fazer corresponder a essa situação uma sanção ou consequência (anulabilidade, nulidade ou inexistência) que torne o acto inapto (logo de inicio ou apos sentença judicial constitutiva) para a produção de efeitos jurídicos a que inicialmente atendia.

Não se verificando este facto, a ilegalidade redundará numa mera irregularidade do acto administrativo. De forma diferente, quando esteja em causa a mera declaração de ineficácia de um acto administrativo, resultante da invalidade ou da não verificação dos respectivos requisitos de integração de eficácia (p.ex., falta de publicação, nulidade da notificação, não verificação de um termo ou de condição suspensiva, entre outros), a acção administrativa adequada é a acção comum, nos termos do artigo 37.º/2, alíneas a) ou b).

O CPTA veio, então, dedicar à questão da impugnabilidade do acto administrativo uma perspectiva de maior reflexão, facto visível pela análise dos princípios gerais aplicáveis à matéria vertidos no artigo 51.º CPTA.

Assim, o critério geral para aferir da impugnabilidade de um acto administrativo resulta do n.º1 do referido artigo, o qual, na senda da sugestão de SERVULO CORREIA, vem adoptar o conceito de eficácia externa para determinar a impugnabilidade contenciosa desse mesmo acto: “são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos” refere a letra da lei.

Esta noção, levar-nos-ia a pensar que, à partida, para que os actos administrativos possam ser objecto de impugnação, é necessário que eles se projectem sobre situações jurídicas respeitantes a entidades distintas daquela que os emite, pelo que ficariam excluídos do universo dos actos administrativos que podem ser objecto de impugnação contenciosa aqueles que contenham decisões de âmbito meramente interno, dado que esgotam os seus efeitos na entidade que os emite.[3] Tal não corresponde, no entanto, à verdade.

Importa ainda denotar que a ideia da lesividade do acto assume relevo, desde logo porque é uma forma de deixar clara a operatividade do preceituado no artigo 268.º n.º4 CRP (com respeito à sua forma) mas também porque é efectivamente no caso de o acto ser lesivo que mais facilmente se constata a sua eficácia externa.

Todavia, de acordo com MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[4], o propósito da formulação do artigo 51.º do CPTA foi o de tentar distinguir a questão da impugnabilidade do acto, da sua lesividade, assim “(…) o problema da impugnabilidade dos actos administrativos, problema prévio que deve ser colocado exclusivamente no plano objecto – natureza dos efeitos que esse acto se destina a introduzir na ordem jurídica, não se confunde com o problema de saber se quem se propõe impugnar um acto administrativo alega ter sido lesado por esse acto, problema (ulterior) que já se situa no plano – subjectivo – da titularidade, na esfera do interessado, de uma situação jurídica legitimante que o habilite a pedir a anulação ou a declaração de nulidade de um acto que seja impugnável e também da titularidade de um interesse em agir, fundado na existência de uma necessidade efectiva de tutela jurisdicional”.

Deste modo, ao adoptar-se o critério da eficácia externa para lá da lesividade do acto, alarga-se o âmbito dos actos impugnáveis, uma vez que o serão efectivamente todos aqueles que se afigurem passiveis de produzir desde logo os seus efeitos na esfera jurídica individualizada de um qualquer interessado, definindo assim concretamente a relação jurídica por tal modo estabelecida entre este e a Administração. Cai assim de vez qualquer exigência de definitividade – vertical ou horizontal – do acto administrativo para efeitos da sua impugnabilidade, o que, de certa forma, acaba por trazer novamente a lume a questão de saber se é ou não admissível manter a figura do recurso hierárquico necessário [5]

Todavia, como sublinha MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[6], a eficácia externa não se relaciona com a substancia, mas sim com a circunstância de, num determinado momento, um acto poder produzir os seus efeitos na esfera jurídica de alguém. Daí que importe sublinhar o disposto no artigo 54.º CPTA, que prevê a possibilidade de impugnar actos ainda não eficazes (sobressaem aqui as questões do interesse em agir enquanto pressuposto), e opera o alargamento do conceito de lesividade: é contemplado não apenas a lesividade actual (como resulta do artigo 51.º), mas também a lesividade potencial.

Já o requisito da definitividade horizontal, foi, desde há muito contestado pela doutrina e afastado da noção de acto administrativo impugnável.

Importa ainda referir que, do ponto de vista estrutural, é decisivo para que os actos jurídicos concretos possam ser objecto de impugnação, que os mesmos possuam conteúdo decisório, no sentido de não se esgotarem na emissão de uma declaração ou juízo de valor, mas exprimam uma resolução que determine o sentido de condutas a adoptar. Desta forma, pode dizer-se que todos os actos administrativos – desde que possuam conteúdo positivo – podem ser objecto de impugnação contenciosa, pelo que todos eles são actos impugnáveis.

Desta forma, fica claro que o controlo da legalidade da actuação administrativa deve manter-se como um valor em si mesmo, podendo por isso ser sindicado por qualquer interessado.




[1] Anotação ao artigo 51.º CPTA.  
[2] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina 2010, pp. 270.
[3] Neste sentido, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, pp.276; SÉRVULO CORREIA, Noções de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1982, pp.274 e 275 e FREITAS DO AMARAL.
[4] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2007, cit., pp 119 e 120
[5] Remete-se esclarecimentos a propósito desta temática para a intervenção realizada pelo colega Diogo Gomes, datada de 30/10/2012
[6] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2007, pp. 134 a 136

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