Com
a reforma do contencioso administrativo o recurso de anulação deu lugar à acção
de impugnação de actos administrativos, que tem por finalidade a apreciação da
totalidade da relação jurídica administrativa. As diferenças entre ambos são,
porém, imensas.
Olhando
apenas para as diferenças estruturais, podemos concluir que o recurso de anulação
contencioso tinha por objecto quaisquer actos administrativos, reais ou
ficcionados (como sucedia com o “acto tácito”), positivos ou negativos,
enquanto a “nova” acção administrativa especial de impugnação se destina apenas
à invalidação de actos administrativos expressos positivos (cujos efeitos
jurídicos se repercutem desfavoravelmente na esfera jurídica de alguém).
A
função de impugnação é, em traços largos, justificada pelo controlo de
invalidade dos actos administrativos. Por esta razão, a lei continua a prever a
utilização deste meio para obter a declaração de nulidade ou de inexistência de
actos administrativos, embora seja provável que o pedido continue a ser, em
regra, dirigido a obter a anulação de tais actos.
O
conceito de acto administrativo impugnável constitui um dos pressupostos
processuais específicos e, de cujo preenchimento depende a dedução em juízo da
impugnação de actos administrativos (artigos 50.º a 65.º CPTA), sendo que a
determinação dos actos impugnáveis se fará sempre sem prejuízo injustificado do
demandante[1].
Assim, o acto impugnável surge como o acto passível de ser impugnado junto dos
tribunais administrativos, cujo conceito tradicional era de «recorribilidade do
acto administrativo». A este propósito surgem vários aspectos que são, ou podem
ser, cumulativamente necessários “para que tenhamos ter um acto administrativo
que possa ser impugnado por quem se propõe a impugna-lo”[2],
mas que, em bom rigor, dizem respeito,
cada um deles, a requisitos diferentes.
A
pretensão subjacente à impugnação de actos administrativos, há-de consistir,
como referido no artigo 50.º/1 CPTA, na respectiva anulação ou declaração de nulidade ou inexistência. Esta é, pois, a
pretensão pelo autor, e que tem, necessariamente, de se reportar a um acto
administrativo, sendo que este tem de reunir todos os atributos que permitem
qualifica-lo como um acto.
Assim,
para que a acção impugnatória possa ser considerada procedente, sendo dada como
admissível, é necessário que se afirme a ilegitimidade
jurídica do acto administrativo em causa, padecendo o mesmo de uma qualquer
ilegalidade geradora da sua invalidade. Por sua vez, é igualmente necessário
que a ilegalidade detectada determine a invalidade ou a inexistência do acto em
causa, devendo a ordem jurídica fazer corresponder a essa situação uma sanção
ou consequência (anulabilidade, nulidade ou inexistência) que torne o acto
inapto (logo de inicio ou apos sentença judicial constitutiva) para a produção
de efeitos jurídicos a que inicialmente atendia.
Não
se verificando este facto, a ilegalidade redundará numa mera irregularidade do
acto administrativo. De forma diferente, quando esteja em causa a mera
declaração de ineficácia de um acto administrativo, resultante da invalidade ou
da não verificação dos respectivos requisitos de integração de eficácia (p.ex.,
falta de publicação, nulidade da notificação, não verificação de um termo ou de
condição suspensiva, entre outros), a acção administrativa adequada é a acção
comum, nos termos do artigo 37.º/2, alíneas a) ou b).
O
CPTA veio, então, dedicar à questão da impugnabilidade do acto administrativo
uma perspectiva de maior reflexão, facto visível pela análise dos princípios
gerais aplicáveis à matéria vertidos no artigo 51.º CPTA.
Assim,
o critério geral para aferir da impugnabilidade de um acto administrativo
resulta do n.º1 do referido artigo, o qual, na senda da sugestão de SERVULO
CORREIA, vem adoptar o conceito de eficácia
externa para determinar a impugnabilidade contenciosa desse mesmo acto: “são impugnáveis os actos administrativos com
eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar
direitos ou interesses legalmente protegidos” refere a letra da lei.
Esta
noção, levar-nos-ia a pensar que, à partida, para que os actos administrativos
possam ser objecto de impugnação, é necessário que eles se projectem sobre
situações jurídicas respeitantes a entidades distintas daquela que os emite,
pelo que ficariam excluídos do universo dos actos administrativos que podem ser
objecto de impugnação contenciosa aqueles que contenham decisões de âmbito
meramente interno, dado que esgotam os seus efeitos na entidade que os emite.[3]
Tal não corresponde, no entanto, à verdade.
Importa
ainda denotar que a ideia da lesividade do acto assume relevo, desde logo
porque é uma forma de deixar clara a operatividade do preceituado no artigo
268.º n.º4 CRP (com respeito à sua forma) mas também porque é efectivamente no
caso de o acto ser lesivo que mais facilmente se constata a sua eficácia
externa.
Todavia,
de acordo com MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[4], o
propósito da formulação do artigo 51.º do CPTA foi o de tentar distinguir a
questão da impugnabilidade do acto, da sua lesividade, assim “(…) o problema da impugnabilidade dos actos
administrativos, problema prévio que deve ser colocado exclusivamente no plano
objecto – natureza dos efeitos que esse acto se destina a introduzir na ordem
jurídica, não se confunde com o problema de saber se quem se propõe impugnar um
acto administrativo alega ter sido lesado por esse acto, problema (ulterior)
que já se situa no plano – subjectivo – da titularidade, na esfera do
interessado, de uma situação jurídica legitimante que o habilite a pedir a
anulação ou a declaração de nulidade de um acto que seja impugnável e também da
titularidade de um interesse em agir, fundado na existência de uma necessidade
efectiva de tutela jurisdicional”.
Deste
modo, ao adoptar-se o critério da eficácia externa para lá da lesividade do
acto, alarga-se o âmbito dos actos impugnáveis, uma vez que o serão
efectivamente todos aqueles que se afigurem passiveis de produzir desde logo os
seus efeitos na esfera jurídica individualizada de um qualquer interessado,
definindo assim concretamente a relação jurídica por tal modo estabelecida
entre este e a Administração. Cai assim de vez qualquer exigência de
definitividade – vertical ou horizontal – do acto administrativo para efeitos
da sua impugnabilidade, o que, de certa forma, acaba por trazer novamente a
lume a questão de saber se é ou não admissível manter a figura do recurso
hierárquico necessário [5]
Todavia,
como sublinha MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[6], a
eficácia externa não se relaciona com a substancia, mas sim com a circunstância
de, num determinado momento, um acto poder produzir os seus efeitos na esfera
jurídica de alguém. Daí que importe sublinhar o disposto no artigo 54.º CPTA,
que prevê a possibilidade de impugnar actos ainda não eficazes (sobressaem aqui
as questões do interesse em agir enquanto pressuposto), e opera o alargamento
do conceito de lesividade: é contemplado não apenas a lesividade actual (como
resulta do artigo 51.º), mas também a lesividade potencial.
Já
o requisito da definitividade horizontal, foi, desde há muito contestado pela
doutrina e afastado da noção de acto administrativo impugnável.
Importa
ainda referir que, do ponto de vista estrutural, é decisivo para que os actos
jurídicos concretos possam ser objecto de impugnação, que os mesmos possuam
conteúdo decisório, no sentido de não se esgotarem na emissão de uma declaração
ou juízo de valor, mas exprimam uma resolução que determine o sentido de
condutas a adoptar. Desta forma, pode dizer-se que todos os actos
administrativos – desde que possuam conteúdo positivo – podem ser objecto de
impugnação contenciosa, pelo que todos eles são actos impugnáveis.
Desta
forma, fica claro que o controlo da legalidade da actuação administrativa deve
manter-se como um valor em si mesmo, podendo por isso ser sindicado por qualquer
interessado.
[1] Anotação ao artigo 51.º CPTA.
[3]
Neste sentido, MÁRIO AROSO
DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo,
pp.276; SÉRVULO CORREIA, Noções
de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1982, pp.274 e 275 e FREITAS DO
AMARAL.
[4] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do processo nos Tribunais
Administrativos, Almedina, 2007, cit., pp 119 e 120
[5] Remete-se esclarecimentos a
propósito desta temática para a intervenção realizada pelo colega Diogo Gomes,
datada de 30/10/2012
[6] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do processo nos Tribunais
Administrativos, Almedina, 2007, pp. 134 a 136
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