quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Objecto da acção de condenação à prática de acto devido



     Em virtude do princípio da separação de poderes, o juiz só teria competência para anular actos administrativos, mas nunca para dar ordens às autoridades administrativas. Segundo esta perspectiva vigente, os tribunais dever-se-iam autolimitar em razão de uma “política jurisprudencial de prudência”[1]. No fundo, reinava a confusão entre “julgar” e “administrar”, sendo que a possibilidade de condenar a Administração à prática de actos administrativos devidos, nada tem que ver com uma eventual substituição do tribunal à Administração, invadindo o seu domínio de escolhas que lhe estão acometidas por lei em que já se justificaria invocar o referido principio da separação de poderes.
     Acontecia, portanto, que o contencioso administrativo se baseava no recurso directo de anulação, pelo que a condenação da Administração só era admitida no âmbito do contencioso de anulação por meio da ficção do “acto tácito de indeferimento”: acto que “finge” existir, para se poder “fingir” que se anula esse acto, para “fingir” que daí advirá a obrigação de praticar um acto em sentido contrário.
     Felizmente, esta realidade faz hoje parte do passado. A revisão constitucional de 1997 estabelece expressamente a possibilidade de “determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos” conformando uma tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares perante a Administração – art.º 268.º/4 CRP – que se traduz numa modalidade de acção administrativa especial – art.ºs 66.º e ss. CPA.
     Actualmente, existem, então, duas modalidades da acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido: necessidade de obter prática de “acto administrativo ilegalmente omitido”, ou necessidade de obter prática de um “acto administrativo ilegalmente (…) recusado” (ambos do art.º 66.º/1 CPA).
     Posto isto, importa em seguida, como refere o Professor Vasco Pereira da Silva, não cair na desconsideração da relação indissociável do pedido e da causa de pedir para obter uma correcta noção do objecto do processo.
     O pedido imediato da acção de condenação à prática de acto devido é aquele que, como refere Vieira de Andrade, pretende “obter a condenação da entidade competente á prática, dentro de determinado prazo, de um acto que tenha sido ilegalmente omitido ou recusado”, enquanto, por sua vez, o “acto devido é aquele que deveria ter sido emitido e não foi”[2]. Porém, para o Professor Vasco P. Silva, esta perspectiva do objecto do processo não compreende totalmente o objecto da acção de condenação à prática do acto devido, além de colidir com as soluções apresentadas pelo legislador.
     Refere o Professor que o Código do Processo Administrativo desde logo valoriza o pedido mediato sobre o imediato, de forma que quer perante uma omissão ilegal, quer perante um acto de conteúdo negativo, ou seja, de recusa de um direito, aplica-se o disposto no art.º 66.º/2 CPA: “o objecto do processo é a pretensão do interessado e não o acto de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia condenatória”. Segundo ele, podemos daqui retirar, por isso, primeiro, que o objecto do processo não será nunca o acto administrativo, mas antes o direito do particular a uma determinada prática da Administração que mais não é do que a imposição da lei administrativa de que a Administração aja ou, mais do que isso, actue num determinado sentido. Neste sentido, Mário Aroso de Almeida escreve que “o processo de condenação não é configurado como um processo impugnatório”[3], no sentido de que é irrelevante se já havia um acto administrativo anterior, pois mesmo que fosse esse o caso, a apreciação do tribunal incidirá sobre a posição substantiva do particular. Significa, assim sendo, que o acto administrativo, a existir, não goza de autonomia processual na respectiva acção de condenação: é automaticamente eliminado da ordem jurídica do provimento do pedido do particular no que toca ao direito subjectivo que este pretende fazer valer em virtude de anterior lesão desse mesmo direito.
     A segunda conclusão a extrair trata-se de que o pedido imediato de condenação à prática do acto devido advém do pedido mediato do particular (o direito subjectivo que invoca) por ter sido lesado pela omissão ou recusa ilegal da Administração (causa de pedir).
     Em suma, o objecto do processo é o respectivo direito subjectivo do particular em sede de uma concreta relação jurídica administrativa.
     Esta é a ideia que resulta inclusivamente do art.º 71.º/1 do CPA, que respeita aos deveres de pronúncia do tribunal, reiterando a tese de que está em causa, nesta acção, o efectivo direito do particular, isto é, a relação jurídica substantiva que se quer fazer valer em juízo, e não um acto eventualmente existente ou que tenha existido. Diz o mencionado art.º 71.º/1 CPA que, quer nos casos de omissão ilegal da Administração, quer de recusa por parte da mesma na apreciação de um acto, “o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão competente, anulando ou declarando nulo ou inexistente o eventual acto de indeferimento, mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado imponde a prática de acto devido”. Significa isto que, como defendido, ao tribunal cabe apreciar a concreta relação substantiva existente entre o particular e a Administração de forma a aferir dos direitos e deveres das partes, respectivamente, e determinar convenientemente o cabe então no “acto devido”. O tribunal aprecia ao nível de um juízo material sobre o litígio, determinando a existência ou não do direito e o que a sua existência substantivamente confere ao particular, concluindo com a conduta que entende devida em função do conteúdo daquele direito.
     Por último, de referir o art.º 70.º do CPA que consagra ainda neste âmbito a possibilidade de incluir no objecto do processo pedidos relativos a deferimento parcial das pretensões dos particulares: “quando, na pendência do processo, seja proferido acto administrativo que não satisfaça integralmente a pretensão do interessado, pode ser cumulado o pedido de anulação ou declaração de nulidade ou inexistência desse acto (…)”. Daqui deduz-se que o objecto do processo não se cinge aos factos ou comportamento que antecedem o processo mas também os actos administrativos desfavoráveis durante a pendência da acção, na medida em que estes afectam a relação jurídica que se encontra em juízo. Pretende-se acautelar com este artigo que possa haver um desfasamento entre o objecto do processo das acções de condenação e a relação jurídica material tal qual ela se apresenta no momento da decisão.       




[1] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª edição, p. 377
[2] Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, p. 224 e 225
[3] Mário Aroso de Almeida, O novo regime do processo nos tribunais administrativos e fiscais, 2ª edição, Almedina, p. 200 e 201. 


Raquel Miranda, n.º 19823

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.