quarta-feira, 19 de dezembro de 2012


A conformidade do art. 128. n.2 do CPTA com a Constituição

No art. 128, n. 1 do CPTA, preceito referente ao regime jurídico das providências cautelares administrativas, vem disposto que quando seja requerida a suspensão da eficácia de um acto administrativo, ou seja quando é requerida uma providência cautelar suspensiva, a autoridade administrativa não pode iniciar ou prosseguir a execução, salvo se, mediante resolução fundamentada, reconhecer, no prazo de 15 dias, que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público.
Estamos assim perante uma disposição legal que surge com um claro intuito de tutelar com a maior brevidade possível uma determinada posição jurídica de um particular, consagrando, quando seja requerida a suspensão da eficácia de um acto administrativo, um dever legal da Administração de não dar início ou de suspender a execução de um determinado acto administrativo, garantindo assim a salvaguarda da posição jurídica do particular e evitando, com a suspensão de execução do acto, a lesão do seu direito ou interesse.
Por outro lado, em obediência ao princípio da proporcionalidade e formando-se de acordo com esse uma situação de equilíbrio na pesagem entre os diversos bens jurídicos a tutelar, estatui-se ainda a possibilidade de a Administração manter ou dar início à execução do acto, isto perante casos em que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público.
Por sua vez, no número 2 do artigo 128. do CPTA, vem a definir-se, sem prejuízo do disposto no número 1 do preceito legal em foco, que deve a autoridade administrativa que receba o duplicado impedir, com urgência, que os serviços ou os interessados procedam ou continuem a proceder à execução do acto.
A conformidade, ou desconformidade, da norma exposta no parágrafo anterior tem sido discutida. Assim, para um certo sector doutrinário[1], a disposição em menção seria inconstitucional por violação dos arts. 20. e 268., n. 4 da CRP, ou seja, por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva e, mais concretamente, pela violação da sua densificação constitucional em tutela efectiva jurisdicional dos particulares perante a Administração.
Cumpre, antes de mais, densificar as normas constitucionais aqui em causa. Assim, do princípio da tutela jurisdicional efectiva retiram-se múltiplas vertentes específicas, nomeadamente: i) a garantia de acesso aos tribunais enquanto modo de tutela de direitos e interesses; ii) o direito à informação, representação jurídica e ao contraditório; iii) o direito a uma decisão, num prazo célere e como fruto de um processo equitativo;
Tudo isto pode ser extraído do art. 20 da CRP, sendo posteriormente expressamente estendido à ordem jurisdicional administrativa, por via do art. 268, n. 4 da Lei Fundamental.
Ora, face ao exposto, o problema que afecta o art. 128, n. 2 do CPTA, parece prender-se com o facto de este sofrer de um défice manifesto de consideração dos interesses dos contra-interessados, sendo estes como que ignorados.
Neste preceito aqui em análise, parece renunciar-se a conceder qualquer protecção miníma aos contra-interessados, visto que não se têm em consideração os seus interesses na execução imediata do acto, que até podem ser, quando comparados com os do requerente da providência cautelar, mais dignos e carecedores de tutela judicial.
A Administração complexificou-se, deixando de se apresentar como uma estrutura simples, muitas vezes desempenhando sobretudo funções de Administração agressiva, para adquirir maior densidade, complexidade e assumindo dessa forma uma natureza de cariz mais prestador.
Com a evolução do orgânica da Administração e da natureza das suas funções, é absolutamente compreensível e natural que também a própria relação entre Administração e administrados se tenha alterado. Desta forma, enquanto fenómeno que deve hoje ser alvo de estudo minuncioso, surgiram as relações administrativas poligonais ou multipolares[2], nas quais se observa não a típica relação jurídica simples Administração – particular, mas sim uma relação de natureza muito mais complexa, entre Administração e os particulares e os seus múltiplos interesses, interesses esses que podem, por vezes, ser afectados por uma relação a que são terceiros entre a Administração e um determinado particular.
Do exposto, resulta que no art. 128, n. 2 do CPTA, parece o legislador, ao contrário do que se passou por exemplo na lei processual alemã, ter esquecido os problemas particularmente complexos verificados sobretudo nas relações de natureza urbanística, ambiental, etc, relações essas muito caracterizadas pela sua multipolaridade, nas quais não estão em jogo apenas os interesses bilaterais, mas igualmente os interesses de terceiros que podem vir a ser afectados pela decisão tomada pela Administração.
Ora, atendendo ao exposto, requer-se uma ponderação material complexa dos vários interesses contrastantes, de maneira a manter o equilíbrio entre as múltiplas posições jurídicas subjectivas em confronto, de modo a verificar qual ou quais delas são dignas de maior tutela face à execução ou não execução do acto.
Assim sendo, retira-se que a solução de uma norma da natureza do art. 128, n. 2 do CPTA teria de estar dependente de uma ponderação de danos  e, face a essa ponderação de danos, tendo em conta todas as dificuldades advenientes das relações jurídico administrativas multipolares que hoje se verificam, decidir-se pela suspensão ou não suspensão do acto administrativo em causa.
No entanto, o legislador decidiu conferir prevalência ao interesse do requerente, sem qualquer ponderação de justiça material no caso concreto, podendo assim resultar da aplicação deste preceito o sacrifício de interesses afectos a contra-interessados, cobertos por uma maior dignidade .
Ou seja, perante a redacção do art. 128, n. 2 do CPTA, parece resultar a completa indefensabilidade de um particular que, no âmbito de uma relação poligonal, seja afectado por uma providência cautelar administrativa de natureza suspensiva.
Assim, perante a lesão dos seus direitos por um acto administrativo, o particular interessado tem direito a requerer uma providência, enquanto meio de tutela urgente, podendo daí resultar para a Administração a proibição de executar o acto administrativo.
Quanto à Administração, nos termos do art. 128., n. 1 do CPTA, é-lhe reservada a possibilidade de contornar a proibição de execução do acto administrativo em razão da prossecução do interesse público, cabendo-lhe apenas fundamentar e provar que a proibição da execução do acto lhe seria gravemente prejudicial.
Quanto a contra-interessados que possam ser afectados por esta proibição, é-lhe vedada a possibilidade de continuar a proceder à execução do acto, porém com uma diferença considerável  relativamente à proibição que atinge a Administração: enquanto que a esta última lhe é aberta a possibilidade de contornar tal proibição por motivos de interesse público, aos contra-interessados nenhum mecanismo de defesa imediato lhes é facultado, meio esse que lhes deveria permitir proceder à prova de que o seu interesse pode sair mais prejudicado pela inexecução do acto administrativo em causa, do que o interesse do requerente da providência suspensiva pela execução desse mesmo acto.
Ora, do exposto parece retirar-se não ter o art. 128., n.2 do CPTA em devida conta os direitos e interesses legalmente protegidos dos contra-interessados em matéria de proibição da execução do acto administrativo, devido à mera apresentação de uma providência cautelar suspensiva, não tendo em conta nem procedendo à verificação de qualquer consistência material ou densidade os interesses em jogo, sendo o único mecanismo capaz de contornar essa proibição a resolução fundamentada das entidades administrativas requeridas, deixando-se os contra-interessados numa situação de completa desprotecção.
Como tal, e em consonância com autores citados supra, deve a norma que foi objecto destas linhas ser tida como materialmente inconstitucional por infracção daquilo que vem consagrado nos arts. 20. e 268. da Constituição da República Portuguesa. Pois nos termos em que se encontra redigida, não é dela possível retirar a adequada tutela a que têm direito os contra-interessados, exercendo o contraditório e tendo assim a possibilidade de demonstrar serem os seus interesses prevalecentes na situação em causa, devendo, portanto, não ser aplicada a proibição de execução do acto administrativo nesse caso concreto.


[1] Vide, Bernardo Azevedo e Pedro Gonçalves, Impugnabilidade dos actos praticados ao abrigo do art. 128, n. 2 do CPTA e inconstitucionalidade da norma habilitante, Justiça Administrativa, n. 90
[2] Vide, Francisco Paes Marques As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares. Contributo para a sua Compreensão Substantiva, Almedina, 2011

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