A conformidade do art. 128. n.2 do CPTA com a Constituição
No art. 128, n. 1 do CPTA, preceito referente ao regime
jurídico das providências cautelares administrativas, vem disposto que quando seja requerida a suspensão da
eficácia de um acto administrativo, ou seja quando é requerida uma
providência cautelar suspensiva, a
autoridade administrativa não pode iniciar ou prosseguir a execução, salvo se,
mediante resolução fundamentada, reconhecer, no prazo de 15 dias, que o
diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público.
Estamos assim perante uma disposição legal que surge com um
claro intuito de tutelar com a maior brevidade possível uma determinada posição
jurídica de um particular, consagrando, quando seja requerida a suspensão da
eficácia de um acto administrativo, um dever legal da Administração de não dar
início ou de suspender a execução de um determinado acto administrativo,
garantindo assim a salvaguarda da posição jurídica do particular e evitando, com
a suspensão de execução do acto, a lesão do seu direito ou interesse.
Por outro lado, em obediência ao princípio da
proporcionalidade e formando-se de acordo com esse uma situação de equilíbrio
na pesagem entre os diversos bens jurídicos a tutelar, estatui-se ainda a
possibilidade de a Administração manter ou dar início à execução do acto, isto
perante casos em que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial
para o interesse público.
Por sua vez, no número 2 do artigo 128. do CPTA, vem a
definir-se, sem prejuízo do disposto no número 1 do preceito legal em foco, que
deve a autoridade administrativa que
receba o duplicado impedir, com urgência, que os serviços ou os interessados
procedam ou continuem a proceder à execução do acto.
A conformidade, ou desconformidade, da norma exposta no
parágrafo anterior tem sido discutida. Assim, para um certo sector doutrinário[1],
a disposição em menção seria inconstitucional por violação dos arts. 20. e 268.,
n. 4 da CRP, ou seja, por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva
e, mais concretamente, pela violação da sua densificação constitucional em
tutela efectiva jurisdicional dos particulares perante a Administração.
Cumpre, antes de mais, densificar as normas constitucionais
aqui em causa. Assim, do princípio da tutela jurisdicional efectiva retiram-se
múltiplas vertentes específicas, nomeadamente: i) a garantia de acesso aos tribunais
enquanto modo de tutela de direitos e interesses; ii) o direito à informação, representação
jurídica e ao contraditório; iii) o direito a uma decisão, num prazo célere e
como fruto de um processo equitativo;
Tudo isto pode ser extraído do art. 20 da CRP, sendo
posteriormente expressamente estendido à ordem jurisdicional administrativa,
por via do art. 268, n. 4 da Lei Fundamental.
Ora, face ao exposto, o problema que afecta o art. 128, n. 2
do CPTA, parece prender-se com o facto de este sofrer de um défice manifesto de
consideração dos interesses dos contra-interessados, sendo estes como que
ignorados.
Neste preceito aqui em análise, parece renunciar-se a
conceder qualquer protecção miníma aos contra-interessados, visto que não se têm
em consideração os seus interesses na execução imediata do acto, que até podem
ser, quando comparados com os do requerente da providência cautelar, mais
dignos e carecedores de tutela judicial.
A Administração complexificou-se, deixando de se apresentar
como uma estrutura simples, muitas vezes desempenhando sobretudo funções de
Administração agressiva, para adquirir maior densidade, complexidade e
assumindo dessa forma uma natureza de cariz mais prestador.
Com a evolução do orgânica da Administração e da natureza
das suas funções, é absolutamente compreensível e natural que também a própria
relação entre Administração e administrados se tenha alterado. Desta forma,
enquanto fenómeno que deve hoje ser alvo de estudo minuncioso, surgiram as
relações administrativas poligonais ou multipolares[2],
nas quais se observa não a típica relação jurídica simples Administração –
particular, mas sim uma relação de natureza muito mais complexa, entre
Administração e os particulares e os seus múltiplos interesses, interesses
esses que podem, por vezes, ser afectados por uma relação a que são terceiros
entre a Administração e um determinado particular.
Do exposto, resulta que no art. 128, n. 2 do CPTA, parece o
legislador, ao contrário do que se passou por exemplo na lei processual alemã,
ter esquecido os problemas particularmente complexos verificados sobretudo nas
relações de natureza urbanística, ambiental, etc, relações essas muito
caracterizadas pela sua multipolaridade, nas quais não estão em jogo apenas os
interesses bilaterais, mas igualmente os interesses de terceiros que podem vir
a ser afectados pela decisão tomada pela Administração.
Ora, atendendo ao exposto, requer-se uma ponderação material
complexa dos vários interesses contrastantes, de maneira a manter o equilíbrio
entre as múltiplas posições jurídicas subjectivas em confronto, de modo a
verificar qual ou quais delas são dignas de maior tutela face à execução ou não
execução do acto.
Assim sendo, retira-se que a solução de uma norma da
natureza do art. 128, n. 2 do CPTA teria de estar dependente de uma ponderação
de danos e, face a essa ponderação de danos,
tendo em conta todas as dificuldades advenientes das relações jurídico
administrativas multipolares que hoje se verificam, decidir-se pela suspensão
ou não suspensão do acto administrativo em causa.
No entanto, o legislador decidiu conferir prevalência ao
interesse do requerente, sem qualquer ponderação de justiça material no caso
concreto, podendo assim resultar da aplicação deste preceito o sacrifício de
interesses afectos a contra-interessados, cobertos por uma maior dignidade .
Ou seja, perante a redacção do art. 128, n. 2 do CPTA,
parece resultar a completa indefensabilidade de um particular que, no âmbito de
uma relação poligonal, seja afectado por uma providência cautelar
administrativa de natureza suspensiva.
Assim, perante a lesão dos seus direitos por um acto
administrativo, o particular interessado tem direito a requerer uma providência,
enquanto meio de tutela urgente, podendo daí resultar para a Administração a
proibição de executar o acto administrativo.
Quanto à Administração, nos termos do art. 128., n. 1 do
CPTA, é-lhe reservada a possibilidade de contornar a proibição de execução do
acto administrativo em razão da prossecução do interesse público, cabendo-lhe
apenas fundamentar e provar que a proibição da execução do acto lhe seria
gravemente prejudicial.
Quanto a contra-interessados que possam ser afectados por
esta proibição, é-lhe vedada a possibilidade de continuar a proceder à execução
do acto, porém com uma diferença considerável
relativamente à proibição que atinge a Administração: enquanto que a
esta última lhe é aberta a possibilidade de contornar tal proibição por motivos
de interesse público, aos contra-interessados nenhum mecanismo de defesa
imediato lhes é facultado, meio esse que lhes deveria permitir proceder à prova
de que o seu interesse pode sair mais prejudicado pela inexecução do acto
administrativo em causa, do que o interesse do requerente da providência
suspensiva pela execução desse mesmo acto.
Ora, do exposto parece retirar-se não ter o art. 128., n.2
do CPTA em devida conta os direitos e interesses legalmente protegidos dos
contra-interessados em matéria de proibição da execução do acto administrativo,
devido à mera apresentação de uma providência cautelar suspensiva, não tendo em
conta nem procedendo à verificação de qualquer consistência material ou
densidade os interesses em jogo, sendo o único mecanismo capaz de contornar
essa proibição a resolução fundamentada das entidades administrativas
requeridas, deixando-se os contra-interessados numa situação de completa desprotecção.
Como tal, e em consonância com autores citados supra, deve a
norma que foi objecto destas linhas ser tida como materialmente
inconstitucional por infracção daquilo que vem consagrado nos arts. 20. e 268. da
Constituição da República Portuguesa. Pois nos termos em que se encontra
redigida, não é dela possível retirar a adequada tutela a que têm direito os
contra-interessados, exercendo o contraditório e tendo assim a possibilidade de
demonstrar serem os seus interesses prevalecentes na situação em causa, devendo,
portanto, não ser aplicada a proibição de execução do acto administrativo nesse
caso concreto.
[1] Vide,
Bernardo Azevedo e Pedro Gonçalves, Impugnabilidade dos actos praticados ao
abrigo do art. 128, n. 2 do CPTA e inconstitucionalidade da norma habilitante,
Justiça Administrativa, n. 90
[2] Vide,
Francisco Paes Marques As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares. Contributo para a sua Compreensão Substantiva,
Almedina, 2011
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.