segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Contencioso da Responsabilidade Civil Pública


O artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) determina a responsabilidade civil das entidades públicas mas o próprio direito à indemnização em caso de lesão é um direito fundamental (artigos 16.º e 17.º da C.R.P.). No entanto, no âmbito da Justiça Administrativa, até 2004, colocou-se um problema de maior importância, pois tanto os tribunais judiciais, como os tribunais administrativos, consideravam-se incompetentes para decidir causas em que os danos eram causados pela Administração. Era dominante a doutrina que defendia a tese de que os danos causados pela Administração, no desempenho de actividades de gestão privada, seguiriam os termos do Direito Civil, sendo tais questões suscitadas perante os Tribunais Judiciais, enquanto, os danos causados pela Administração, no exercício da gestão pública, seguiriam os termos do Direito Administrativo, pelo que tais causas, seriam decididas nos Tribunais Administrativos. A jurisprudência seguia o citério do “ambiente de direito administrativo” para poder determinar a responsabilidade administrativa.
Desta forma, verificou-se uma dualidade de regimes jurídicos e de tribunais competentes, resultando daí, uma ideia de fragmentação que não correspondia à unificação do contencioso administrativo.
O Professor Vasco Pereira da Silva aponta várias críticas a esta solução. É de realçar o facto de que, conhecidos “os traumas do Contencioso Administrativo”, já não é adequado falar nesta classificação bipartida de actos de gestão pública (contratos administrativos) e actos de gestão privada da Administração, pois tal distinção é assente na ideia de poderes autoritários da Administração, visto como regime excepcional ao Direito Civil, há muito ultrapassada. O ideal seria a unificação do regime em razão da ideia de função administrativa, vista como satisfação de necessidades colectivas através de formas públicas ou privadas.
Após a reforma do contencioso Administrativo pelas Leis 13/2002, de 19 de Fevereiro e 15/2002, de 22 de Fevereiro veio-se pôr termos às dificuldades de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil. O artigo 4.º/1, alíneas g), h) e i) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (E.T.A.F.) consagrava o regime de responsabilidade civil extracontratual.
Defende o Professor Vasco Pereira da Silva que é em função dos artigos 212.º/3 da C.R.P. e 1.º/1 do E.T.A.F. que devem ser interpretadas as disposições do artigo 4.º do E.T.A.F. pois o nosso ordenamento jurídico delimita a competência dos tribunais administrativos e fiscais em razão da natureza das relações jurídicas em causa, completando essa cláusula geral com uma enumeração exemplificativa que concretiza o tipo de situações jurídicas susceptíveis de ser enquadradas no Contencioso Administrativo. É da análise conjugada destes preceitos que resulta a consagração de um regime de unidade jurisdicional da responsabilidade civil pública, que agora passa a ser da competência dos tribunais administrativos.
Desta forma, e sem prejuízo de algumas restrições, podemos afirmar que os tribunais administrativos passam a ser competentes para dirimir todas as questões de responsabilidade civil extracontratual que envolvam pessoas colectivas de direito público, não só por danos resultantes do exercício da função administrativa mas também por danos resultantes do exercício da função legislativa e judicial (responsabilidade de titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, incluindo acções de regresso contra si intentadas pelas entidades publicas as quais prestam serviço).
Contudo, a unidade jurisdicional não está isenta de equívocos e mantém-se esta dualidade legislativa até 2008 pois tal orientação precisava de ser completada através de legislação substantiva em conformidade. Com a entrada em vigor do Decreto-lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro surgiram interpretações literalistas contrárias ao regime de unificação proposto, reintroduzindo-se a relevância da distinção entre gestão pública e gestão privada, pois apenas se referia a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público. Mas não fazia sentido colocar fora do âmbito da jurisdição administrativa, aqueles litígios que devem ser considerados administrativos para o efeito da determinação do tribunal competente (art.4º/1), só porque, naquele processo, o pedido foi dirigido contra o particular ou porque tendo sido intentada contra uma entidade administrativa esta fez um pedido reconvencional.
O artigo 4.º/1 alínea h) atribui à jurisdição administrativa a competência dos litígios em matéria de responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, completando a previsão da alínea g) e o artigo 4.º/1 alínea i), atribui à jurisdição administrativa a competência dos litígios em matéria de responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Até à publicação do Decreto-lei n.º 67/2007, esta última alínea não teria aplicação prática pois não havia norma que submetesse essas entidades ao regime da responsabilidade civil extracontratual (Decreto-lei n.º 48 051), não sendo então, os tribunais administrativos competentes, como bem referiam os Professores Mario Aroso de Almeida e Diogo Freitas do Amaral. Já os Professores Vieira de Andrade e Vasco Pereira da Silva, em coerência com a alínea d) do mesmo preceito, presumiam a aplicabilidade do regime substantivo de direito público, pelo menos à responsabilidade por exercício de poderes públicos por concessionários e por entes privados de mão pública. Há, então, atribuição de competência à jurisdição administrativa para apreciar questões de responsabilidade resultantes do mau funcionamento da administração pública.
Excluídas estão a apreciação das questões de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como as acções de regresso contra magistrados que daí decorram (4.º/3 a) do E.T.A.F.) pois o Supremo Tribunal Administrativo orientava-se no sentido de distinguir os casos de responsabilidade fundada na imputação de um facto ilícito ao juiz no exercício da sua função jurisdicional daqueles em que o facto ilícito fosse imputado a um órgão da administração judiciária no exercício de actividade estranha à função de julgar ou ao serviço globalmente considerado, sem individualização de um agente concretamente responsável para o efeito, só admitindo a competência dos tribunais administrativos no segundo caso.
Desta forma, segundo os Professores Vasco Pereira da Silva e Mário Aroso de Almeida, o E.T.A.F. incumbe os tribunais administrativos de apreciarem todas as questões de responsabilidade que possam decorrer da actuação dos magistrados com a única ressalva do juízo sobre verificação de erro judiciário, em que só será competente, o tribunal administrativo, se o erro tiver sido cometido no âmbito dessa jurisdição.
Com a lei 67/2007 surge finalmente o novo regime da responsabilidade civil pública que se aplica aos danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa (artigo 1.º/1), harmonizando-se, assim o regime substantivo com a uniformização jurisdicional.
Críticas são apontadas à mesma pois veio-se a revelar, na prática, dotada de “efeitos secundários”, ocorrendo um desvio da discussão sobre a responsabilidade civil pública da função para a função jurisdicional, surgindo, ainda uma ambiguidade linguística em torno do artigo 1.º/2 que refere que correspondem ao exercício da actividade administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou regulado por disposições ou princípio de direito administrativo: pode ser feita uma interpretação em termos amplos, correspondente a todo o universo da actividade administrativa, mas também a expressão “prerrogativas de poder público” invoca a velha distinção entre gestão pública e gestão privada.
O Professor Vasco Pereira da Silva indica que temos que seguir uma posição conforme a regulação de normas e princípios do Direito Administrativo que abrange as actuações de gestão privada já que estas normas e princípios são aplicáveis a toda e qualquer actuação da Administração Pública (artigo 2.º/5 do Código de Procedimento Administrativo), referindo-se, o legislador a uma função administrativa em sentido amplo pois a expressão mais restritiva aparece em alternativa à mais ampla, pondo termo a dicotomias legislativas e unificando todo o regime jurídico da função administrativa.

AMARAL, Diogo Freitas do ; ALMEIDA, Mário Aroso de - Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo. 3ª Edição. Coimbra: Almedina, 2004. Páginas 25- 51

AMARAL, Diogo Freitas do – Curso de Direito Administrativo, Volume II. 2ª Edição. Coimbra: Almedina, 2011. Páginas 685 e 704-710.

SILVA, Vasco Pereira da – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. 2ª Edição. Coimbra: Almedina, 2009 Páginas 516-548.

SOUSA, Nuno J. Vasconcelos Albuquerque de - Noções de Direito Administrativo, 1ª Edição. Lisboa: Coimbra Editora, 2011. Páginas 423-441.

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