O artigo 22.º da
Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) determina a responsabilidade
civil das entidades públicas mas o próprio direito à indemnização em caso de
lesão é um direito fundamental (artigos 16.º e 17.º da C.R.P.). No entanto, no
âmbito da Justiça Administrativa, até 2004, colocou-se um problema de maior
importância, pois tanto os tribunais judiciais, como os tribunais administrativos,
consideravam-se incompetentes para decidir causas em que os danos eram causados
pela Administração. Era dominante a doutrina que defendia a tese de que os
danos causados pela Administração, no desempenho de actividades de gestão
privada, seguiriam os termos do Direito Civil, sendo tais questões suscitadas
perante os Tribunais Judiciais, enquanto, os danos causados pela Administração,
no exercício da gestão pública, seguiriam os termos do Direito Administrativo,
pelo que tais causas, seriam decididas nos Tribunais Administrativos. A
jurisprudência seguia o citério do “ambiente de direito administrativo” para
poder determinar a responsabilidade administrativa.
Desta forma,
verificou-se uma dualidade de regimes jurídicos e de tribunais competentes,
resultando daí, uma ideia de fragmentação que não correspondia à unificação do
contencioso administrativo.
O Professor Vasco
Pereira da Silva aponta várias críticas a esta solução. É de realçar o facto de
que, conhecidos “os traumas do Contencioso Administrativo”, já não é adequado
falar nesta classificação bipartida de actos de gestão pública (contratos
administrativos) e actos de gestão privada da Administração, pois tal distinção
é assente na ideia de poderes autoritários da Administração, visto como regime
excepcional ao Direito Civil, há muito ultrapassada. O ideal seria a unificação
do regime em razão da ideia de função administrativa, vista como satisfação de
necessidades colectivas através de formas públicas ou privadas.
Após a reforma do
contencioso Administrativo pelas Leis 13/2002, de 19 de Fevereiro e 15/2002, de
22 de Fevereiro veio-se pôr termos às dificuldades de delimitação do âmbito da
jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil. O artigo 4.º/1,
alíneas g), h) e i) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(E.T.A.F.) consagrava o regime de responsabilidade civil extracontratual.
Defende o Professor
Vasco Pereira da Silva que é em função dos artigos 212.º/3 da C.R.P. e 1.º/1 do
E.T.A.F. que devem ser interpretadas as disposições do artigo 4.º do E.T.A.F.
pois o nosso ordenamento jurídico delimita a competência dos tribunais
administrativos e fiscais em razão da natureza das relações jurídicas em causa,
completando essa cláusula geral com uma enumeração exemplificativa que
concretiza o tipo de situações jurídicas susceptíveis de ser enquadradas no
Contencioso Administrativo. É da análise conjugada destes preceitos que resulta
a consagração de um regime de unidade jurisdicional da responsabilidade civil
pública, que agora passa a ser da competência dos tribunais administrativos.
Desta forma, e sem
prejuízo de algumas restrições, podemos afirmar que os tribunais administrativos
passam a ser competentes para dirimir todas as questões de responsabilidade
civil extracontratual que envolvam pessoas colectivas de direito público, não
só por danos resultantes do exercício da função administrativa mas também por
danos resultantes do exercício da função legislativa e judicial (responsabilidade
de titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos,
incluindo acções de regresso contra si intentadas pelas entidades publicas as
quais prestam serviço).
Contudo, a unidade
jurisdicional não está isenta de equívocos e mantém-se esta dualidade
legislativa até 2008 pois tal orientação precisava de ser completada através de
legislação substantiva em conformidade. Com a entrada em vigor do Decreto-lei
n.º 67/2007, de 31 de Dezembro surgiram interpretações literalistas contrárias
ao regime de unificação proposto, reintroduzindo-se a relevância da distinção
entre gestão pública e gestão privada, pois apenas se referia a
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito
público. Mas não fazia sentido colocar fora do âmbito da jurisdição
administrativa, aqueles litígios que devem ser considerados administrativos
para o efeito da determinação do tribunal competente (art.4º/1), só porque,
naquele processo, o pedido foi dirigido contra o particular ou porque tendo sido
intentada contra uma entidade administrativa esta fez um pedido reconvencional.
O artigo 4.º/1 alínea
h) atribui à jurisdição administrativa a competência dos litígios em matéria de
responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários,
agentes e demais servidores públicos, completando a previsão da alínea g) e o artigo
4.º/1 alínea i), atribui à jurisdição administrativa a competência dos litígios
em matéria de responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos
quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais
pessoas colectivas de direito público. Até à publicação do Decreto-lei n.º
67/2007, esta última alínea não teria aplicação prática pois não havia norma
que submetesse essas entidades ao regime da responsabilidade civil
extracontratual (Decreto-lei n.º 48 051), não sendo então, os tribunais
administrativos competentes, como bem referiam os Professores Mario Aroso de
Almeida e Diogo Freitas do Amaral. Já os Professores Vieira de Andrade e Vasco
Pereira da Silva, em coerência com a alínea d) do mesmo preceito, presumiam a
aplicabilidade do regime substantivo de direito público, pelo menos à
responsabilidade por exercício de poderes públicos por concessionários e por
entes privados de mão pública. Há, então, atribuição de competência à
jurisdição administrativa para apreciar questões de responsabilidade
resultantes do mau funcionamento da administração pública.
Excluídas estão a
apreciação das questões de responsabilidade por erro judiciário cometido por
tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como as acções de
regresso contra magistrados que daí decorram (4.º/3 a) do E.T.A.F.) pois o Supremo
Tribunal Administrativo orientava-se no sentido de distinguir os casos de
responsabilidade fundada na imputação de um facto ilícito ao juiz no exercício
da sua função jurisdicional daqueles em que o facto ilícito fosse imputado a um
órgão da administração judiciária no exercício de actividade estranha à função
de julgar ou ao serviço globalmente considerado, sem individualização de um
agente concretamente responsável para o efeito, só admitindo a competência dos
tribunais administrativos no segundo caso.
Desta forma, segundo
os Professores Vasco Pereira da Silva e Mário Aroso de Almeida, o E.T.A.F. incumbe
os tribunais administrativos de apreciarem todas as questões de responsabilidade
que possam decorrer da actuação dos magistrados com a única ressalva do juízo
sobre verificação de erro judiciário, em que só será competente, o tribunal
administrativo, se o erro tiver sido cometido no âmbito dessa jurisdição.
Com a lei 67/2007
surge finalmente o novo regime da responsabilidade civil pública que se aplica
aos danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e
administrativa (artigo 1.º/1), harmonizando-se, assim o regime substantivo com
a uniformização jurisdicional.
Críticas são
apontadas à mesma pois veio-se a revelar, na prática, dotada de “efeitos
secundários”, ocorrendo um desvio da discussão sobre a responsabilidade civil
pública da função para a função jurisdicional, surgindo, ainda uma ambiguidade
linguística em torno do artigo 1.º/2 que refere que correspondem ao exercício
da actividade administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de
prerrogativas de poder público ou regulado por disposições ou princípio de
direito administrativo: pode ser feita uma interpretação em termos amplos,
correspondente a todo o universo da actividade administrativa, mas também a
expressão “prerrogativas de poder público” invoca a velha distinção entre
gestão pública e gestão privada.
O Professor Vasco
Pereira da Silva indica que temos que seguir uma posição conforme a regulação
de normas e princípios do Direito Administrativo que abrange as actuações de
gestão privada já que estas normas e princípios são aplicáveis a toda e
qualquer actuação da Administração Pública (artigo 2.º/5 do Código de
Procedimento Administrativo), referindo-se, o legislador a uma função
administrativa em sentido amplo pois a expressão mais restritiva aparece em
alternativa à mais ampla, pondo termo a dicotomias legislativas e unificando
todo o regime jurídico da função administrativa.
AMARAL, Diogo Freitas do ; ALMEIDA, Mário Aroso de - Grandes Linhas da Reforma do Contencioso
Administrativo. 3ª Edição. Coimbra: Almedina, 2004. Páginas 25- 51
AMARAL, Diogo Freitas do – Curso de Direito Administrativo, Volume II. 2ª Edição. Coimbra:
Almedina, 2011. Páginas 685 e 704-710.
SILVA, Vasco Pereira da – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. 2ª Edição.
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SOUSA, Nuno J. Vasconcelos Albuquerque de - Noções de Direito Administrativo, 1ª
Edição. Lisboa: Coimbra Editora, 2011. Páginas 423-441.
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