A suspensão do prazo para impugnação judicial por utilização
de meios de impugnação administrativa – o ADN do artigo 59/4 do CPTA
I – O nascimento
Vem expresso no art. 59/4 do CPTA[1],
que a utilização de meios de impugnação
administrativa suspende o prazo de impugnação contenciosa do ato
administrativo, que só retoma o seu curso com a notificação da decisão
proferida sobre a impugnação administrativa ou com o decurso do respetivo prazo
legal[2].
O preceito legal a analisar nas linhas que se seguem, surgiu
como uma inovação introduzida pela reforma do contencioso administrativo de
2004, atendendo a que, até aí, os meios de impugnação administrativa não tinham
por efeito provocar a suspensão do prazo do, então, recurso contencioso de
anulação.
Parecia assim, antes desta alteração, obedecer-se à lógica
de que o recurso hierárquico facultativo não interrompia nem suspendia o prazo
do recurso contencioso, graças, justamente, à sua natureza facultativa. Assim
sendo, seria este recurso hierárquico irrelevante para efeitos contenciosos.
A introdução, pela reforma de 2004, do art. 59/4 no CPTA,
parece assim surgir como um rompimento com lógica referida supra. Ou seja, através deste mecanismo, procurou-se evitar a
desvalorização das impugnações administrativas em favor das impugnações
judiciais, visto se apresentarem as primeiras, num primeiro olhar, como um meio
apto para a tutela dos direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos
dos particulares face à Administração, de uma forma mais célere e menos dispendiosa
do que se apresenta o recurso à via da impugnação contenciosa.
Assim sendo, em virtude da norma de
suspensão do prazo de impugnação judicial, cuja análise que se pretende
empreender, e nas palavras de Paulo Otero[3]:
acaba por se transformar a impugnação
administrativa facultativa em impugnação recomendável.
Dados que estão os elementos
mínimos essenciais da ratio legis subjacente
ao n. 4 do art. 59 do CPTA, importa agora proceder à análise do modo de
funcionamento e âmbito de aplicação deste instituto, que surge como uma exceção
ao regime geral da continuidade dos prazos.
Face ao exposto, parece ser
facilmente constatável que a norma aqui em causa apresenta uma clara dupla –
função: (i) de incentivo à utilização
de meios de impugnação administrativa pelos particulares; (ii) de permitir à Administração um novo controlo sobre a
legalidade e prossecução do interesse público da sua atuação;
Esta dupla – função, deverá sempre estar
presente aquando da delimitação do âmbito de aplicação e do modo de funcionamento
da norma cuja análise aqui se efetua.
II – Enunciado do problema
Minimamente claro que está o ADN do
art. 59 /4 do CPTA, é agora momento de introduzir a problemática que aqui se
visa tratar.
Nesse sentido, pode-se dizer que a
problemática aqui existente prende-se, essencialmente, com o âmbito de
aplicação desta norma e, para a sua resolução, ergue-se imediatamente uma
questão de natureza literal que importa abordar e apreciar.
Ora, nos termos do CPA (Código do
Procedimento Administrativo) , no âmbito do recurso administrativo, apenas a pronúncia
da Administração sobre o mérito de um determinado recurso é denominado decisão (veja-se a epígrafe do art. 174
CPA) . Por outro lado, quando um recurso não vê o seu mérito apreciado, devido
a alguma das razões presentes no art. 173 do diploma em foco, considera-se
estar-se perante uma situação definida como rejeição
de recurso.
Com efeito, nos termos do art. 173
do CPA, a rejeição de recurso deve ocorrer quando: (i) esse haja sido interposto para órgão incompetente; (ii) quando o ato impugnado não seja
suscetível de recurso; (iii) quando o
recorrente careça de legitimidade; (iv)
quando o recurso haja sido interposto fora do prazo; (v) quando ocorra qualquer outra causa que obste ao conhecimento do
recurso; Assim sendo, e realçando novamente o que se pretende retirar daqui, de
acordo com o CPA, parece só se falar de decisão quando existe uma apreciação
material sobre a pretensão em causa, ao passo que quando ocorre algum facto que
impede a apreciação do mérito do recurso se está perante uma rejeição do
recurso.
Por sua vez, no n. 4 do art. 59 do
CPTA, apenas se refere à decisão, sem ser mencionada a rejeição de recurso, o
que levanta dúvidas em torno do seu âmbito de aplicação. Assim, numa primeira
instância, importa saber se o preceito legal em causa se restringe apenas aos
casos em que chega a verificar-se uma verdadeira apreciação material do
recurso.
Ou seja, se é necessário para o
art. 59/4 funcionar e, consequentemente, dar-se a suspensão do prazo para a
impugnação contenciosa, que a Administração venha a emitir uma decisão de
mérito sobre a matéria que suscita a utilização da impugnação administrativa,
não se aplicando a norma quando tal decisão não venha a surgir por razões que
ditam uma rejeição do recurso sem ponderação sobre a pretensão nele presente.
III – A indefensabilidade da uma
restrição extrema
Colocada nos termos anteriores, a
restrição ao art. 59 /4 do CPTA parece injustificada e mesmo indefensável, por
um vasto conjunto de argumentos.
Desde logo, pela insegurança
jurídica que acarretaria. Assim, ao adotar-se tal interpretação, só após a
emissão de uma decisão de mérito pela Administração ou pelo decurso do prazo
legal para a sua emissão, sem que essa se tenha dado, se saberia ter-se dado a
suspensão do prazo para a impugnação judicial do ato administrativo. Enquanto
nenhuma destas hipóteses se verificasse, o particular correria o risco de ver o
seu recurso administrativo ser rejeitado sem que a Administração tenha
procedido a uma decisão sobre o seu mérito e, consequentemente, sem que se
tenha dado a suspensão do prazo para impugnação contenciosa, podendo mesmo,
inclusive, este último já ter expirado, situação cuja admissibilidade parece,
no mínimo, afigurar-se como questionável ao abrigo do princípio constitucional
de tutela jurisdicional efetiva dos administrados face a qualquer lesão dos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos, derivada de um ato
administrativo, nos termos do art. 264 /4 da CRP.
Em adição a isso, atendendo à
própria ratio do art. 59/4 do CPTA
referida supra, é facilmente
percetível que uma delimitação tão restritiva do seu campo de aplicação de modo
algum se coaduna com o seu propósito de converter a impugnação administrativa facultativa numa impugnação
administrativa recomendável, podendo
mesmo dizer-se que acabaria por esvaziar a norma de sentido, por implicar uma
considerável instabilidade em torno da aplicabilidade do que em si vem disposto
e, consequentemente, em redor da suspensão ou não suspensão do prazo para a
impugnação judicial.
Para além disso, procedendo à
decomposição da norma, e à identificação dos elementos que parecem fazer parte
da sua previsão e estatuição, notamos que, enquanto elemento de previsão temos,
a utilização de meios de impugnação
administrativa e, enquanto elemento da estatuição, a suspensão do prazo de impugnação contenciosa.
Ou seja, enquanto elemento
necessário para que se verifique a aplicação da norma parece surgir
exclusivamente uma utilização efetiva de meios de impugnação administrativa.
Quanto aos restantes comandos que se encontram neste preceito legal, há a
referir que, em nome de um tráfego célere e eficiente, o direito não pode
corroborar com situações de indefinição e suspensão demasiado longas, daí o
estabelecimento claro de que o prazo deixará de estar suspenso quando surgir
uma decisão (não tendo esta de ser de mérito) ou através do decurso do prazo
legal para a pronúncia da decisão por parte da Administração. Porém, da forma
como está construído o preceito legal, parece claro que para este funcionar
basta a simples utilização efetiva de meios de impugnação.
IV – Um âmbito de aplicação lato,
mas até que ponto?
Negada que está a viabilidade da delimitação
mais restrita do âmbito de aplicação do art. 59/4 do CPTA, chega o momento de
avançar um pouco mais de maneira a tentar descobrir quais poderão os seus
limites.
Na senda deste propósito, importa
agora mencionar Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira[4], que,
pronunciando-se sobre a questão, afirmaram que para fazer operar a suspensão
prevista neste preceito legal seria preciso estar-se perante uma verdadeira
impugnação, tempestivamente deduzida, ao passo que a sua rejeição com outros
fundamentos não prejudicaria já a produção daquele efeito suspensivo.
Sobre esta questão também o STA se
viria a pronunciar, numa posição que viria a, posteriormente, ser corroborada
na sua essencialidade por Pedro Machete[5]. Assim,
num acórdão datado de 16 de Abril de 2008, veio o STA discordar da ideia que a utilização de meios de
impugnação administrativa suspende sempre o prazo de impugnação contenciosa.
Neste ponto consideramos que, sob pena de a reação administrativa degenerar em
mero expediente para obter a dilação injustificada do prazo de impugnação
contenciosa, o efeito suspensivo previsto no art.59/4 do CPTA, não ocorre
(entre outras situações possíveis cuja ponderação não interessa à economia da
presente revista) quando o meio de impugnação administrativa utilizado não
estiver legalmente previsto. Ora, no caso em apreço, o recorrente lançou mão,
como vimos, de um recurso tutelar ilegal, por não estar expressamente previsto
por lei.
Pronunciando-se também sobre a
problemática e procurando rebater quer os argumentos de Mário e Rodrigo Esteves
de Oliveira, quer da posição assumida pelo STA, surgem Tiago Duarte e Cláudia
Saavedra Pinto[6],
afirmando, quanto à posição dos primeiros que não só a suspensão do prazo de
impugnação não pode ficar dependente da decisão do recurso, qualquer que ela
seja, como também não compreendem as razões que os levam a estabelecer in limine a diferenciação entre motivos
de rejeição da impugnação administrativa que inviabilizariam o efeito
suspensivo e os que não inviabilizariam esse efeito.
Quanto à posição assumida pelo STA,
vêm Tiago Duarte e Cláudia S. Pinto afirmar não ignorar que a suspensão
automática do prazo de impugnação judicial dos atos administrativos pelo
simples uso dos meios de impugnação administrativa, independentemente da
decisão que daí resulte, poderá redundar em alguns abusos com intuito meramente
dilatório.
Com efeito, seria possível, na
conceção, destes autores, apresentar impugnações administrativas fora do prazo
legal, ou mesmo apresentar recursos administrativos que não sejam aplicáveis,
apenas com o intuito de prolongar o prazo para a impugnação judicial.
No entanto, como afirmam, não é
este o único mecanismo legal previsto que determina um efeito suspensivo
automático pela sua mera utilização. Refira-se a exemplo disso a suspensão de
atos administrativos pela proposição de providência cautelar, de acordo com o
art. 128 do CPTA.
Em adição a isso, a amplitude do
efeito suspensivo depende, em última análise, da própria administração, que
assim teria motivos para analisar com maior rapidez e eficiência a reclamação
ou o recurso administrativo, de maneira a evitar uma suspensão prolongada dos
prazos em causa.
Por fim, o período máximo pelo qual
tal efeito suspensivo, obtido por esta via, poderá perdurar será, em regra, de
30 dias, tal como se retira dos arts. 165 e 175 do CPA, findos os quais a
impugnação se tem por tacitamente indeferida.
V – Conclusões
De tudo o exposto, parece ser de se
concluir estarmos perante um conflito de valores e bens jurídicos.
De um lado, temos a tutela da
segurança e das expectativas jurídicas dos administrados; do outro, a tutela da
adequada, célere e não abusiva utilização dos meios processuais e
procedimentais.
Chegados aqui, para proceder à
ponderação, cabe convocar os princípios da proporcionalidade, favorecimento do
processo e pro actione, bem como a
própria evolução no sentido da subjectivização e jurisdicionalização integral
da Administração, observável nas múltiplas revisões constitucionais e reformas
do contencioso Administrativo ocorridas ao longo dos anos.
Assim sendo, parece que a
interpretação que melhor se coaduna com os aspetos enunciados supra, bem como com os próprios fins que
parecem estar subjacentes ao art.59/4 do CPTA (e que são, no fundo, espelho os
princípios mencionados e do sentido da evolução da Administração referido) terá
de ser ampla, surgindo automaticamente o efeito suspensivo do prazo de
impugnação judicial, por uso dos meios de impugnação administrativa.
Porém, isso não implica que se
desvalorizem os problemas que daí possam resultar e que se deixe para segundo
plano a tutela da adequada, célere e não abusiva utilização de meios
processuais e procedimentais. Sendo assim, parece ser lógica a exigência de
Mário Esteves de Oiveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, de que se esteja
perante uma verdadeira impugnação, tempestivamente deduzida.
Com efeito, parece ser útil
diferenciar entre motivos de rejeição da impugnação administrativo que
inviabilizam o efeito suspensivo e motivos que não o inviabilizam. Dentro dos
primeiros estaria, justamente e apenas, a tempestividade.
Neste sentido, apresentam-se argumentos
de natureza mais prática e pragmática, do que propriamente de jurídica. Assim
se, tal como é referido por Tiago Duarte e Cláudia S. Pinto, muitas vezes quem
opta pelo uso de meios de impugnação administrativa são particulares de boa-fé,
que apenas procuram por termo à lesão de direitos de que são alvo por um
determinado ato administrativo de forma célere, não recorrendo portanto sequer
a aconselhamento jurídico profissional (e apresentando, portanto, talvez por
isso, uma defesa suscetível de ser indeferida sem sequer chegar a haver uma
decisão de mérito), parece-me dever ser também da diligência do homem médio que
situações de suspensão de efeitos e de regulação de uma determinada situação
acarretam, usualmente, muitos mais aspetos negativos do que positivos. Daí que
o exercício de uma determinada posição jurídica esteja, normalmente, limitado a
um prazo, de modo a não se gerar demasiada insegurança, instabilidade e
paralisação do tráfego jurídico, muito pouco propícias ao desenvolvimento.
Como tal, e recorrendo a um
conceito de boa-fé subjetiva ética, parece estar conforme com a
proporcionalidade exigida na ponderação aqui em causa, que seja exigível, para
a verificação do efeito suspensivo do prazo para impugnação contenciosa que o
uso dos meios de impugnação administrativa implique uma verdadeira impugnação,
tempestivamente deduzida.
Dessa forma, privilegia-se o
incentivo à diligência dos particulares e tutela-se o uso responsável dos meios
procedimentais, ao mesmo tempo que se defendem os propósitos do art. 59/4 do
CPTA, enquanto mecanismo elaborado para evitar longas incursões judiciais,
salvaguardando a tutela dos direitos subjetivos e interesses legalmente
protegidos dos particulares face à Administração, bem como proporcionando a
esta uma última oportunidade de controlo da legalidade e prossecução do
interesse público da sua atuação, que deverá ser efetivamente aproveitada.
[1] Código
de Procedimento dos Tribunais Administrativos
[2] Prazo
legal esse que será em regra de 30 dia, de acordo com os arts. 165 e 175 do CPA
[3] PAULO
OTERO, Impugnações administrativas, Caderno de Justiça Administrativa, n. 28
[4] MÁRIO
ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos
Tribunais Administrativos Anotado, vol. I, Coimbra, 2004
[5] PEDRO
MACHETE, “Notificação deficiente do acto administrativo – a articulação entre
meios administrativos e contenciosos, Caderno de Justiça Administrativa, n. 75”
[6] TIAGO
DUARTE e CLÁUDIA SAAVEDRA PINTO, “A Suspensão e a Interrupção do prazo para a
Impugnação judicial dos Actos Administrativos. Vale a pena arriscar?, Estudos
de Direito Público, PLMJ, 2010”
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