sábado, 15 de dezembro de 2012

Legitimidade processual no Código de Processo dos Tribunais Administrativos

O CPTA introduz um conceito central de legitimidade, activa e passiva, das partes, nos arts.9º e 10º, revelando-se, assim, uma nova opção do legislador que parte do entendimento de que a questão da legitimidade processual é um fenómeno de âmbito geral, respeitante à situação das partes no processo, contrariamente à concepção tradicional que assentava num mero tratamento fragmentário desta matéria por referência aos diversos meios processuais especialmente previstos.
Desta forma, o contencioso adquire a dimensão subjectiva preconizada por Vasco Pereira da Silva. Essa nova concepção viabiliza o alargamento do número de pessoas legitimadas a reagir contra actuações administrativas  lesivas de direitos subjectivos dos particulares, entendidos num sentido amplo. 
A previsão do nº1 do art.9º do CPTA, sugere, à primeira vista, um afastamento do critério tradicional de legitimidade baseado na titularidade de um interesse directo, pessoal e legítimo, mantendo-se, esse critério apenas no âmbito da acção de condenação à prática de acto devido e na impugnação de actos administrativos. 
O legislador do CPTA, nos demais casos, elegeu o pressuposto processual, "interesse em agir", como critério aferidor do direito do demandante em recorrer ao processo. O nº1 do art.9º assume, assim, a característica típica de uma disposição geral, congregadora de princípios basilares comuns em matéria de legitimidade activa, sendo potencialmente aplicável aos diversos meios processuais  que integram o contencioso administrativo.
Versaremos, agora, sobre a legitimidade processual nas formas de processo principais previstas no CPTA: a acção administrativa comum (arts. 37º e ss) e a acção administrativa especial (arts. 46º e ss).

  • Acção administrativa comum
Para além dos sujeitos processuais tradicionais - art.40º/1, al.a) CPTA - este Código vem alargar o âmbito da legitimidade activa nas acções relativas aos contratos: permite-se que terceiros fora da relação contratual (art.40º/1, als. c), d) e e)) e que terceiros estranhos ao procedimento pré-contratual (al. f)) proponham as respectivas acções tendentes à anulação do contrato.
A al.g) do nº1 do art.40º é uma norma residual, mas vem a reconhecer a pessoas singulares ou colectivas, titulares ou defensoras de direitos subjectivos ou de interesses legalmente protegidos, legitimidade para impugnar contratos que contenham cláusulas ilegais ou lesivas e que, sendo executados, são susceptíveis de causar prejuízos. O nº2 do art.40º também alarga, entretanto, de forma muito significativa a legitimidade para a propositura de acções dirigidas a obter a execução dos contratos.
Na acção de simples apreciação prescinde-se da demonstração da titularidade do direito ou interesse conferindo tutela a quem demonstre ter interesse em agira, decorrente da utilidade ou vantagem imediata que lhe possa advir da acção - art. 39º/1ª parte CPTA. Como nos ensina Manuel de Andrade, é nas acções de simples apreciação que a condição interesse em agir mais avulta como quid inconfundível com o direito do demandante. Tem lugar quando se verifica um estado de incerteza - objectiva e grave - sobre a coexistência do direito a apreciar. Algumas acções de simples apreciação são referidas nas alíneas a) e b) do nº2 do art.37º CPTA.
Nos termos do art.37º/3 CPTA, qualquer pessoa ou entidade pode propor, perante a jurisdição administrativa, uma acção de condenação de particulares investidos no exercício de funções administrativas. Portanto, exige-se, por um lado, a demonstração de um interesse em agir resultante da violação do direito do demandante e da consequente necessidade da sua reintegração e, por outro lado, que tenha havido uma ofensa directa - não necessariamente actual - dos direitos ou interesses do particular ou entidade pública.

  • Acção administrativa especial 
A acção de impugnação de actos administrativos prevista no art.55º CPTA procurou habilitar todos os titulares de interesses relevantes a defenderem as suas posições jurídicas.
Tem legitimidade para impugnar quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos - art.55º/1, al. a) CPTA. A utilização da fórmula " interesse directo e pessoal" aponta no sentido de que a legitimidade individual para impugnar actos administrativos não tem de basear-se na ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido, mas se basta pela circunstância de o acto estar a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, de modo que a anulação ou a declaração de nulidade desse acto lhe traz, pessoalmente, uma vantagem directa. 
Já no que se refere ao carácter "directo" e "pessoal" cabe destrinçar:
  1. o interesse directo  significa que o impugnante deve estar constituído numa situação de efectiva necessidade de tutela judiciária;
  2. o carácter pessoal do interesse diz verdadeiramente respeito ao pressuposto processual da legitimidade, na medida em que se trata de exigir que a utilidade que o interessado pretende obter com a anulação ou a declaração de nulidade do acto impugnado seja uma utilidade pessoal.
Para além da tutela destes interesses ditos individualizáveis, o CPTA veio a reconhecer também legitimidade  para impugnar actos administrativos às pessoas colectivas públicas ou privadas, quantos aos direitos e interesses que lhes cumpra defender (art.55º/1, al.c)).
O CPTA introduziu ainda a possibilidade de as pessoas colectivas públicas reagirem perante actos que afectem a sua esfera de interesses (art.55º/1, als.c), d) e e)).
Na acção de condenação à prática de acto administrativo legalmente devido, têm legitimidade para requerer a condenação da Administração à prática de acto administrativo legalmente devido os titulares de um direito ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão do acto (art. 68º/1, al.a) CPTA) e as pessoas colectivas, públicas ou privadas, em relação aos direitos e interesses que lhes cumpra defender (art.68º/1, al.b)). Em qualquer destes casos devem estar preenchidos os pressupostos  da acção de condenação, previstos no art.67º/1 CPTA.
Na acção de impugnação de normas regulamentares e na declaração de ilegalidade por omissão, introduziu-se como condição da primeira acção, o interesse em demandar, que pressupõe que o autor possa alegar um prejuízo, actual ou iminente (art.73º/2 CPTA), enquanto que na segunda acção, o prejuízo deverá ser concreto e actual, isto é, directamente resultante da situação de omissão (art.77º/1 CPTA).

A legitimidade passiva vem prevista no art.10º/1 CPTA. A parte demandada tanto pode ser uma entidade pública como pode ser um particular, situação prevista pelo ETAF. Quando a parte demandada é uma entidade pública, o art.10º/2 CPTA prevê uma regra geral de legitimidade da pessoa colectiva de direito público. o nº3 do art.10º CPTA estabelece, por sua vez, uma regra especial. Assim, quando o processo tiver por objecto actos ou omissões de uma entidade administrativa independente, destituída de personalidade jurídica, a acção é intentada contra o Estado ou contra a pessoa colectiva de direito público a que essa entidade pertença.
Tendo em conta o príncipio de favorecimento do processo, presente no art.7º CPTA, introduziu-se o nº4 do art.10º uma regra que visa afastar o indeferimento liminar da petição ou o convite judicial ao seu aperfeiçoamento.
O nº5 do art.10º introduz outra regra especial: quando haja uma cumulação de pedidos, deduzidos contra diferentes pessoas colectivas ou ministérios, devem ser demandadas as pessoas colectivas ou os ministérios contra quem sejam dirigidas as pretensões formuladas. Há, por conseguinte, uma legitimidade plural do lado passivo. Também, nos casos previstos do art.10º/7, pode surgir uma pluralidade subjectiva do lado passivo. esta disposição deve ser aplicada, em paralelo, quando se pretenda reagir contra actos praticados por sujeitos privados no âmbito de um procedimento pré-contratual de direito público (art.100º/3 CPTA).
Como explica Fernandes Cadilha, o facto de se admitir a admissibilidade de listisconsórcio voluntário ou da pluralidade subjectiva subsidiária, sempre que a relação jurídica controvertida respeite a entidade públicas e privadas, destina-se a evitar que pedidos com o mesmo objecto e que assentam numa responsabilidade solidária ou conjunta devam ser deduzidos em acções autónomas em razão da diversa natureza jurídica das entidades envolvidas.
Existe, ainda, a possibilidade de se requerer a intervenção processual de terceiros do lado passivo, remetendo, neste caso, para o disposto na lei processual civil (art.10º/8 CPTA). Esta inovação veio pôr termo a uma controvérsia que durou vários anos: a jurisprudência do STA entendia que "no que concerne aos incidentes de intervenção de terceiros a legislação processual apenas consagra a assistência (art.49º do Regulamento do STA) não estando previsto, designadamente o incidente de intervenção principal espontânea", considerando ainda que não se tratava "de uma omissão, mas de simples não consagração do aludido incidente de intervenção", não aplicando, por isso, o disposto da al.a) do art. 351º CPC (Ac. do STA de 09-10-97, Proc. nº018487). Freitas do Amaral analisando os argumentos apontados pela jurisprudência: "perante este artigo, que define a posição jurídica do assistente como subordinada à parte principal, duas interpretações são á primeira vista possíveis:
  1. o legislador de 1957 introduziu a referência expressa à assistência porque era essa a única modalidade de intervenção de terceiros que queria admitir no recurso contencioso de anulação;
  2. o legislador regulou expressamente a assistência porque lhe quis dar um regime diferente, pelo menos em parte, do que resultaria da aplicação do CPC, valendo o silêncio em relação à intervenção principal, não como rejeição da admissibilidade desta, mas como aceitação plena do regime para ela traçado da lei processual comum,"
concluindo "tal como no processo civil há um incidente de assistência a par de um incidente de intervenção principal, também no recurso contencioso de anulação coexistem os dois institutos - o primeiro como uma regulamentação específica constante no art.49º do Regulamento do STA, e o segundo sujeito à aplicação supletiva, com as necessárias adaptações, do CPC, por força do art.1º da Lei de Processo no Tribunais Administativos".
Enfim, independentemente da aplicabilidade subsidiária do regime processual civil sobre a matéria, o art.10º/8 CPTA tem, todo o caso, o cuidado de exigir a intervenção provocada das entidades cuja colaboração seja necessária à satisfação das pretensões deduzias em juízo contra a Administração.

Temos vindo a analisar uma relação jurídico-administrativa em que há apenas dois interesses contrapostos. Vamos agora para uma breve análise à intervenção contra-interessados como partes principais.
Ao abrigo do art.10º/1 CPTA, é reconnhecido aos contra-interessados o estatuto de verdadeiras partes demandadas, em situação de litisconsórcio necessário passivo com a entidade pública. Por este motivo, o legislador veio dar maior densidade ao conceito de legitimidade passiva dos contra-interessados. à luz dos arts.57º e 68º/2 CPTA, podem definir-se como correspondendo às pessoas a quem a procedência da acção possa prejudicar ou que tenham interesse na manutenção da situação contra a qual se insurge o autor, e que possam ser identificadas em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo. Trata-se na verdade de domínios em que a acção é proposta contra a Administração, contra a entidade que praticou ou que omitiu ou recusou o acto administrativo, mas em que há sujeitos que também são partes no litígio, na medida em que os seus interesses coincidem com os da Administração e podem ser directamente afectados na sua consistência jurídica com a procedência da acção. Basta pensar no exemplo da impugnação de uma licença de construção: ao interesse do vizinho que pretende a anulação dessa licença, contrapõe-se, pelo menos, o interesse do proprietário em cuja esfera jurídica a licença constituiu o direito de construir.

Por fim, em complemento à matéria exposta, o CPTA admite em termos muito amplos e mais favoráveis do que aqueles que resultavam do art.38º LPTA, a coligação, presente no art.12º CPTA. Aproximando-se da disciplina da coligação prevista no CPC, o legislador consagra a possibilidade de se coligarem autores e/ou demandados, por pedidos diferentes, desde que: a causa de pedir seja a mesma e única ou os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência (art.12º/1,al.a)); ou, embora sendo diferente a causa de pedir, que a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação dos mesmos princípios e das mesmas regras de direito (art.12º/1, al.b)).


Bibliografia:

- Mário Aroso de Almeida, "O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos", 4ª edição revista, Almedina, 2005, págs. 27-72
- Fernades Cadilha, "Legitimidade Processual"
- Freitas do Amaral, "Da admissibilidade do incidente de intervenção principal em recurso de anulação no contencioso administrativo", Lex, 1995, págs. 277-278
- Vasco Pereira da Silva, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", 2ª edição, Almedina, 2009, págs.315-437
- Mário Aroso de Almeida, "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 2010, págs. 221-267

Joao Lima
Nº19678


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