“O Novo Contencioso
Administrativo”
A tutela plena e efectiva dos
direitos dos particulares é um
importantíssimo direito fundamental, considerado a “pedra angular” do Processo
Administrativo. Foi paulatinamente aperfeiçoado nas sucessivas revisões
constitucionais, traduzindo a garantia constitucional de acesso à Justiça
Administrativa, sendo que existem em função deste Princípio diversos meios
processuais – sentenças, cujos efeitos vão da simples apreciação e
reconhecimento de direitos, à condenação, passando pela impugnação dos actos
administrativos e por medidas cautelares.
Centramo-nos agora na fase em que
houve um esforço por superar as dificuldades do contencioso administrativo que
remontam aos tempos do administrador-juiz, onde era patente uma “promiscuidade”
entre a Administração e o poder judicial, encontrando-se os poderes da entidade
controladora limitados à anulação dos actos administrativos. Passou-se então a
considerar os Tribunais administrativos como verdadeiros tribunais, e os
efeitos das suas sentenças tendo por medida a plenitude e efectividade dos
direitos dos particulares carecidos de tutela. Este Processo Administrativo faz
corresponder, a cada direito do particular, um adequado meio de defesa em
juízo. Este novo modelo de Justiça Administrativa permitia ao legislador
ordinário alguma discricionaridade na sua actuação.
O método adoptado pelo legislador
português da reforma do Contencioso Administrativo, no sentido da sua
actualização, foi mais próximo do modelo dito latino (direito italiano,
espanhol e francês), ou seja, uma tentativa de unificar todos os meios
processuais independentemente dos pedidos ou dos efeitos das sentenças, ainda
que se tenha optado por consagrar uma dicotomia de meios processuais: acção
administrativa comum versus acção administrativa especial. Dentro de cada um
dos meios processuais podem existir tantas espécies de efeitos de sentenças
quanto os pedidos susceptíveis de serem formulados. Fala-se a este propósito
das acções de “banda larga”. O nosso Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (doravante, CPTA) regulou os seguintes meios processuais:
1. A acção administrativa comum (artigos 37º
e seguintes);
2. A acção administrativa especial (artigos
46º e seguintes);
3. Os processos urgentes: contencioso
eleitoral (artigos 97º e seguintes), contencioso pré-contratual (artigos 100º e
seguintes) e intimações (artigos 104º e seguintes);
4. Os processos cautelares (artigos 112º e
seguintes);
5. O processo executivo (artigos 157º e
seguintes);
O Princípio da tutela
jurisdicional efectiva está também consagrado no artigo 2º do CPTA,
correspondendo ao direito a obter, atempadamente, uma decisão judicial
favorável tanto no que respeita à tutela declarativa, como à cautelar e à
executiva. O artigo 7º concretiza, estabelecendo que este princípio implica o
direito a uma justiça material que se pronuncie sobre o mérito das pretensões
formuladas, não se limitando a uma apreciação formal do litígio. O nº 2 do
artigo 2º enumera os efeitos das sentenças correspondentes, sendo possível concluir
que para determinar os poderes de pronúncia do juiz não basta saber qual é o
meio processual em causa, é necessário saber também qual o pedido susceptível
de ser apreciado. O elenco constante deste nº2 é exemplificativo, numa lógica
de progressivo aumento de intensidade dos poderes de pronúncia judicial,
partindo das sentenças de simples apreciação (alíneas a), b) e c)) para as de
condenação (alíneas e), f), g), i), j), l)), passando pelas constitutivas
(alíneas d), h)).
Todavia, do ponto de vista dos
meios processuais, as alíneas a), b), c), e), f) e g) correspondem à acção
administrativa comum, enquanto que as alíneas d), h), i) e j) correspondem à
acção administrativa especial. A alínea l), por sua vez, corresponde aos processos
urgentes, ao passo que a alínea m) corresponde aos meios cautelares.
A amplitude dos poderes de
pronúncia dos tribunais administrativos já não se distingue mais da de qualquer
outro tribunal, tendo-se superado a limitação à mera anulação. Os dois
principais meios processuais do CPTA (a acção administrativa comum e a acção
administrativa especial), tanto podem dar origem a sentenças de simples
apreciação, como de anulação ou de condenação – a qualificação dos efeitos da
sentença fica dependente do pedido.
O critério de distinção entre a
acção administrativa comum e a especial é, não raras vezes, extraído da
comparação entre os artigos 37º e 46º do CPTA – o legislador da reforma teria
considerado que pertencem à acção administrativa comum todos os litígios
administrativos não especialmente regulados, integrando a acção administrativa
especial, os processos relativos a actos e a regulamentos administrativos. O
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva manifesta sérias reservas relativamente
a esta delimitação, atribuindo a sua origem a “pré-conceitos” de natureza
substantiva, designadamente:
• Os “poderes exorbitantes”
administrativos, os quais justificariam regras excepcionais para actos e
regulamentos administrativos, manifestadas na acção “especial”, correspondente
a um contencioso limitado ou de mera anulação. Contudo, a acção administrativa
especial permite tanto a anulação de actos, como a condenação na prática de
actos administrativos devidos, daí que não se entende o porquê de o legislador
a ter denominado “especial”, já que todo o contencioso administrativo passou a
ser de plena jurisdição.
• O facto de o Direito
Administrativo ser visto como um conjunto de excepções ao Direito Civil,
resultando daqui a ideia de especialidade do Direito Administrativo, no sentido
de excepcionalidade de poderes ou de privilégios, que marcou a lógica
autoritária da Administração Agressiva do Estado Liberal, hoje ultrapassada. A
Administração é hoje também Prestadora e Infra-estrutural. O Direito Administrativo
não pode já ser visto como um conjunto de excepções ao Direito Privado, mas sim
como disciplina autónoma, com regras e valores próprios. Aliás, como muito bem
expõe a Senhora Professora Maria João Estorninho, com o fenómeno da “fuga para
o Direito Privado” de domínios tradicionalmente administrativos, é tempo de
repensar as igualmente tradicionais fronteiras entre Direito Público e Direito
Privado.
• A perspectiva de que o Processo
Administrativo seria um conjunto de regras e meios excepcionais relativamente
ao Processo Civil. O Processo Administrativo é autónomo, no âmbito de uma
jurisdição separada. É aqui, igualmente alvo de reservas, a técnica legislativa
de regular apenas a acção administrativa especial e de remeter o regime jurídico
da acção administrativa comum para o Código de Processo Civil (CPC).
Facto é que a “acção comum” do
contencioso administrativo (no duplo sentido de acção mais frequente e mais
característica do contencioso administrativo) é efectivamente a denominada acção
administrativa especial, sendo muito flagrante esta realidade quando analisado
o regime da cumulação de pedidos constante dos artigos 4º e 5º do CPTA.
O artigo 3º do CPTA vem ainda,
nesta sequência, estabelecer que, em regra, os tribunais julgam apenas do
cumprimento do direito por parte da Administração, não se debruçando sobre
questões de mérito ou de oportunidade (nº1). O nº2 do mesmo artigo diz-nos que os tribunais podem
fixar sanções pecuniárias compulsórias não apenas no domínio do processo executivo
(artigo 169º), mas também no processo declarativo (artigo 66º, nº3) e no
cautelar (artigo 127º, nº2). Trata-se de uma solução que incute eficácia ao
nosso Contencioso Administrativo. Neste nº2, permite-se que o tribunal não
apenas conheça da questão do cumprimento do direito aplicável, mas que se
debruçe sobre uma questão de oportunidade – a determinação do momento do
cumprimento da sentença. O artigo 3º, no seu nº3 vem ainda estabelecer que no
processo executivo o juiz pode emitir sentenças substitutivas, quando estejam
em causa o exercício de poderes vinculados, em caso de não execução voluntária
da sentença declarativa por parte da autoridade administrativa.
A passagem de um contencioso de mera anulação
para um contencioso de plena jurisdição está patente também na admissibilidade
de todos os meios probatórios. A relação jurídica administrativa está em
destaque depois da Reforma.
Analisando agora os elementos do processo
administrativo, ou seja, as realidades constitutivas essenciais, sem as quais
não chega a haver sequer processo, começamos pelos sujeitos. Os processos do
contencioso administrativo são processos de partes. Nem sempre foi assim. O
particular e a Administração não eram considerados partes, estavam em juízo
apenas para colaborar com o tribunal na defesa da legalidade e do interesse
público. O particular era, nesta concepção clássica, um mero “objecto do poder
soberano”. Esta ideia faz também parte de uma concepção actocêntrica do Direito
Administrativo. A já referida confusão entre Administração e Justiça só foi
verdadeiramente afastada pela Constituição de 1976, que integrou o Contencioso
Administrativo no Poder Judicial (foi o “baptismo” da Justiça Administrativa).
Agora, o CPTA consagra
expressamente tanto a regra de que os particulares e Administração são partes
no processo, como o princípio da igualdade efectiva da sua participação
processual (artigo 6º), completado pelo Princípio da cooperação e boa fé
processual do artigo 8º. Enquanto pressuposto processual relativo aos sujeitos,
os problemas de legitimidade (artigos 9º e seguintes) encontram-se
intrínsecamente ligados aos da qualidade de parte.
Quando falamos de direitos
subjectivos, de interesses legítimos e de interesses difusos, o Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva considera com razão, que nos encontramos
perante posições substantivas de vantagem, para satisfação de interesses
individuais, que possuem idêntica natureza, embora possam apresentar conteúdos
distintos, devendo por esta razãp proceder-se ao tratamento unificado dessas
posições substantivas de vantagem dentro do “conceito-quadro” de direito
subjectivo.
Os conceitos de pessoa colectiva
e de órgão administrativo foram também repensados.
O objecto do processo é também
elemento essencial de qualquer processo. A orientação tradicional olhava para o
objecto do processo de uma forma dualista, conforme se tratasse do contencioso
de anulação (que tinha por objecto o acto administrativo) ou conforme
estivessemos perante o contencioso das acções, onde se admitia, à semelhança do
Processo Civil, que os direitos subjectivos alegados fossem objecto do litígio.
A reforma do Contencioso Administrativo deu cumprimento ao modelo
constitucional de um contencioso plenamente jurisdicionalizado e
subjectivizado, destinado ao julgamento das acções e recursos contenciosos que
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais (artigo 212º, nº3 da CRP). Os direitos dos
particulares passaram a estar no centro do processo.
Centrando-nos agora no pedido,
sabemos que se trata do efeito pretendido pelo seu autor (pedido imediato) e do
direito que esse efeito visa tutelar (pedido mediato). A posição tradicional
apenas se focava na vertente imediata.
Quando estamos perante uma acção
para defesa de direitos, é necessário considerar o pedido tanto na sua vertente
imediata como mediata, ligando os efeitos pretendidos aos direitos que se visa
proteger. No caso de acção pública ou acção popular, os sujeitos actuam para
defesa da legalidade e do interesse público, independentemente de ter
interesse pessoal na demanda, conforme o disposto no nº2 do artigo 9º CPTA.
Neste último caso, há apenas que considerar a vertente do pedido imediato – o
contencioso administrativo desempenha aqui um função directamente objectiva.
Quanto à causa de pedir, a sua
função tradicional, antes da Reforma portanto, era a apreciação integral da
actuação administrativa trazida a juízo de modo a permitir uma consideração
objectiva da legalidade do acto perante todas as normas aplicáveis e em face de
todas as fontes de invalidade. Já a doutrina clássica considerava que o que
relevava para a determinação da causa de pedir eram as alegações do autor
referentes ao acto administrativo. A reforma instituiu um contencioso
administrativo de matriz primacialmente subjectiva – protecção plena e efectiva
dos direitos dos particulares. A cauda de pedir deve ser sempre entendida de
forma conexa com as pretensões formuladas pelas partes, as quais correspondem a
direitos subjectivos dos particulares (acção para defesa de interesses
próprios) ou são um expediente formal para tutela do interesse público, da
legalidade, num processo de partes (acção pública e acção popular), conforme o
disposto no artigo 95º, nº1 CPTA.
Maria Margarida Duarte
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