quarta-feira, 19 de dezembro de 2012


“O Novo Contencioso Administrativo”

A tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares  é um importantíssimo direito fundamental, considerado a “pedra angular” do Processo Administrativo. Foi paulatinamente aperfeiçoado nas sucessivas revisões constitucionais, traduzindo a garantia constitucional de acesso à Justiça Administrativa, sendo que existem em função deste Princípio diversos meios processuais – sentenças, cujos efeitos vão da simples apreciação e reconhecimento de direitos, à condenação, passando pela impugnação dos actos administrativos e por medidas cautelares.
Centramo-nos agora na fase em que houve um esforço por superar as dificuldades do contencioso administrativo que remontam aos tempos do administrador-juiz, onde era patente uma “promiscuidade” entre a Administração e o poder judicial, encontrando-se os poderes da entidade controladora limitados à anulação dos actos administrativos. Passou-se então a considerar os Tribunais administrativos como verdadeiros tribunais, e os efeitos das suas sentenças tendo por medida a plenitude e efectividade dos direitos dos particulares carecidos de tutela. Este Processo Administrativo faz corresponder, a cada direito do particular, um adequado meio de defesa em juízo. Este novo modelo de Justiça Administrativa permitia ao legislador ordinário alguma discricionaridade na sua actuação.
O método adoptado pelo legislador português da reforma do Contencioso Administrativo, no sentido da sua actualização, foi mais próximo do modelo dito latino (direito italiano, espanhol e francês), ou seja, uma tentativa de unificar todos os meios processuais independentemente dos pedidos ou dos efeitos das sentenças, ainda que se tenha optado por consagrar uma dicotomia de meios processuais: acção administrativa comum versus acção administrativa especial. Dentro de cada um dos meios processuais podem existir tantas espécies de efeitos de sentenças quanto os pedidos susceptíveis de serem formulados. Fala-se a este propósito das acções de “banda larga”. O nosso Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA) regulou os seguintes meios processuais:
1.      A acção administrativa comum (artigos 37º e seguintes);
2.      A acção administrativa especial (artigos 46º e seguintes);
3.      Os processos urgentes: contencioso eleitoral (artigos 97º e seguintes), contencioso pré-contratual (artigos 100º e seguintes) e intimações (artigos 104º e seguintes);
4.      Os processos cautelares (artigos 112º e seguintes);
5.      O processo executivo (artigos 157º e seguintes);
O Princípio da tutela jurisdicional efectiva está também consagrado no artigo 2º do CPTA, correspondendo ao direito a obter, atempadamente, uma decisão judicial favorável tanto no que respeita à tutela declarativa, como à cautelar e à executiva. O artigo 7º concretiza, estabelecendo que este princípio implica o direito a uma justiça material que se pronuncie sobre o mérito das pretensões formuladas, não se limitando a uma apreciação formal do litígio. O nº 2 do artigo 2º enumera os efeitos das sentenças correspondentes, sendo possível concluir que para determinar os poderes de pronúncia do juiz não basta saber qual é o meio processual em causa, é necessário saber também qual o pedido susceptível de ser apreciado. O elenco constante deste nº2 é exemplificativo, numa lógica de progressivo aumento de intensidade dos poderes de pronúncia judicial, partindo das sentenças de simples apreciação (alíneas a), b) e c)) para as de condenação (alíneas e), f), g), i), j), l)), passando pelas constitutivas (alíneas d), h)).
Todavia, do ponto de vista dos meios processuais, as alíneas a), b), c), e), f) e g) correspondem à acção administrativa comum, enquanto que as alíneas d), h), i) e j) correspondem à acção administrativa especial. A alínea l), por sua vez, corresponde aos processos urgentes, ao passo que a alínea m) corresponde aos meios cautelares.
A amplitude dos poderes de pronúncia dos tribunais administrativos já não se distingue mais da de qualquer outro tribunal, tendo-se superado a limitação à mera anulação. Os dois principais meios processuais do CPTA (a acção administrativa comum e a acção administrativa especial), tanto podem dar origem a sentenças de simples apreciação, como de anulação ou de condenação – a qualificação dos efeitos da sentença fica dependente do pedido.
O critério de distinção entre a acção administrativa comum e a especial é, não raras vezes, extraído da comparação entre os artigos 37º e 46º do CPTA – o legislador da reforma teria considerado que pertencem à acção administrativa comum todos os litígios administrativos não especialmente regulados, integrando a acção administrativa especial, os processos relativos a actos e a regulamentos administrativos. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva manifesta sérias reservas relativamente a esta delimitação, atribuindo a sua origem a “pré-conceitos” de natureza substantiva, designadamente:
• Os “poderes exorbitantes” administrativos, os quais justificariam regras excepcionais para actos e regulamentos administrativos, manifestadas na acção “especial”, correspondente a um contencioso limitado ou de mera anulação. Contudo, a acção administrativa especial permite tanto a anulação de actos, como a condenação na prática de actos administrativos devidos, daí que não se entende o porquê de o legislador a ter denominado “especial”, já que todo o contencioso administrativo passou a ser de plena jurisdição.
• O facto de o Direito Administrativo ser visto como um conjunto de excepções ao Direito Civil, resultando daqui a ideia de especialidade do Direito Administrativo, no sentido de excepcionalidade de poderes ou de privilégios, que marcou a lógica autoritária da Administração Agressiva do Estado Liberal, hoje ultrapassada. A Administração é hoje também Prestadora e Infra-estrutural. O Direito Administrativo não pode já ser visto como um conjunto de excepções ao Direito Privado, mas sim como disciplina autónoma, com regras e valores próprios. Aliás, como muito bem expõe a Senhora Professora Maria João Estorninho, com o fenómeno da “fuga para o Direito Privado” de domínios tradicionalmente administrativos, é tempo de repensar as igualmente tradicionais fronteiras entre Direito Público e Direito Privado.
• A perspectiva de que o Processo Administrativo seria um conjunto de regras e meios excepcionais relativamente ao Processo Civil. O Processo Administrativo é autónomo, no âmbito de uma jurisdição separada. É aqui, igualmente alvo de reservas, a técnica legislativa de regular apenas a acção administrativa especial e de remeter o regime jurídico da acção administrativa comum para o Código de Processo Civil (CPC).
Facto é que a “acção comum” do contencioso administrativo (no duplo sentido de acção mais frequente e mais característica do contencioso administrativo) é efectivamente a denominada acção administrativa especial, sendo muito flagrante esta realidade quando analisado o regime da cumulação de pedidos constante dos artigos 4º e 5º do CPTA.
O artigo 3º do CPTA vem ainda, nesta sequência, estabelecer que, em regra, os tribunais julgam apenas do cumprimento do direito por parte da Administração, não se debruçando sobre questões de mérito ou de oportunidade (nº1). O nº2 do  mesmo artigo diz-nos que os tribunais podem fixar sanções pecuniárias compulsórias não apenas no domínio do processo executivo (artigo 169º), mas também no processo declarativo (artigo 66º, nº3) e no cautelar (artigo 127º, nº2). Trata-se de uma solução que incute eficácia ao nosso Contencioso Administrativo. Neste nº2, permite-se que o tribunal não apenas conheça da questão do cumprimento do direito aplicável, mas que se debruçe sobre uma questão de oportunidade – a determinação do momento do cumprimento da sentença. O artigo 3º, no seu nº3 vem ainda estabelecer que no processo executivo o juiz pode emitir sentenças substitutivas, quando estejam em causa o exercício de poderes vinculados, em caso de não execução voluntária da sentença declarativa por parte da autoridade administrativa.
 A passagem de um contencioso de mera anulação para um contencioso de plena jurisdição está patente também na admissibilidade de todos os meios probatórios. A relação jurídica administrativa está em destaque depois da Reforma.
 Analisando agora os elementos do processo administrativo, ou seja, as realidades constitutivas essenciais, sem as quais não chega a haver sequer processo, começamos pelos sujeitos. Os processos do contencioso administrativo são processos de partes. Nem sempre foi assim. O particular e a Administração não eram considerados partes, estavam em juízo apenas para colaborar com o tribunal na defesa da legalidade e do interesse público. O particular era, nesta concepção clássica, um mero “objecto do poder soberano”. Esta ideia faz também parte de uma concepção actocêntrica do Direito Administrativo. A já referida confusão entre Administração e Justiça só foi verdadeiramente afastada pela Constituição de 1976, que integrou o Contencioso Administrativo no Poder Judicial (foi o “baptismo” da Justiça Administrativa).
Agora, o CPTA consagra expressamente tanto a regra de que os particulares e Administração são partes no processo, como o princípio da igualdade efectiva da sua participação processual (artigo 6º), completado pelo Princípio da cooperação e boa fé processual do artigo 8º. Enquanto pressuposto processual relativo aos sujeitos, os problemas de legitimidade (artigos 9º e seguintes) encontram-se intrínsecamente ligados aos da qualidade de parte.
Quando falamos de direitos subjectivos, de interesses legítimos e de interesses difusos, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva considera com razão, que nos encontramos perante posições substantivas de vantagem, para satisfação de interesses individuais, que possuem idêntica natureza, embora possam apresentar conteúdos distintos, devendo por esta razãp proceder-se ao tratamento unificado dessas posições substantivas de vantagem dentro do “conceito-quadro” de direito subjectivo.
Os conceitos de pessoa colectiva e de órgão administrativo foram também repensados.
O objecto do processo é também elemento essencial de qualquer processo. A orientação tradicional olhava para o objecto do processo de uma forma dualista, conforme se tratasse do contencioso de anulação (que tinha por objecto o acto administrativo) ou conforme estivessemos perante o contencioso das acções, onde se admitia, à semelhança do Processo Civil, que os direitos subjectivos alegados fossem objecto do litígio. A reforma do Contencioso Administrativo deu cumprimento ao modelo constitucional de um contencioso plenamente jurisdicionalizado e subjectivizado, destinado ao julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212º, nº3 da CRP). Os direitos dos particulares passaram a estar no centro do processo.
Centrando-nos agora no pedido, sabemos que se trata do efeito pretendido pelo seu autor (pedido imediato) e do direito que esse efeito visa tutelar (pedido mediato). A posição tradicional apenas se focava na vertente imediata.
Quando estamos perante uma acção para defesa de direitos, é necessário considerar o pedido tanto na sua vertente imediata como mediata, ligando os efeitos pretendidos aos direitos que se visa proteger. No caso de acção pública ou acção popular, os sujeitos actuam para defesa da legalidade e do interesse público, independentemente de ter interesse pessoal na demanda, conforme o disposto no nº2 do artigo 9º CPTA. Neste último caso, há apenas que considerar a vertente do pedido imediato – o contencioso administrativo desempenha aqui um função directamente objectiva.
Quanto à causa de pedir, a sua função tradicional, antes da Reforma portanto, era a apreciação integral da actuação administrativa trazida a juízo de modo a permitir uma consideração objectiva da legalidade do acto perante todas as normas aplicáveis e em face de todas as fontes de invalidade. Já a doutrina clássica considerava que o que relevava para a determinação da causa de pedir eram as alegações do autor referentes ao acto administrativo. A reforma instituiu um contencioso administrativo de matriz primacialmente subjectiva – protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares. A cauda de pedir deve ser sempre entendida de forma conexa com as pretensões formuladas pelas partes, as quais correspondem a direitos subjectivos dos particulares (acção para defesa de interesses próprios) ou são um expediente formal para tutela do interesse público, da legalidade, num processo de partes (acção pública e acção popular), conforme o disposto no artigo 95º, nº1 CPTA.

Maria Margarida Duarte
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